O relatório “O estado da nação e as políticas públicas 2019” teve ontem alguma atenção, em que o destaque foi dado ao que seria a proposta de resolver o financiamento do Serviço Nacional de Saúde através da expansão da ADSE, contida no Capítulo dedicado ao sector da saúde e assinado por Tiago Correia. Lendo as 6 páginas dedicadas à saúde neste relatório (link acima, para quem as quiser ler), constata-se que o destaque não corresponde ao que é a proposta feita neste capítulo. Mas já lá vamos.
A intenção dos coordenadores deste volume foi, certamente, a de ter capítulos não muito longos, o que obriga a ter uma capacidade de síntese e de seleção muito grande. Se o objectivo é fazer um diagnóstico do sector público da saúde, esperar-se-ia que as afirmações apresentadas remetessem para as fontes de informação que as sustentam (e que terão de ser mais do notícias de imprensa). E não há esse cuidado com a profundidade desejável – por exemplo, no caso da equidade, remete para o Relatório de Primavera do OPSS apresentado o ano passado (amanhã teremos a atualização do Relatório de Primavera/Verão do OPSS). Mas se o objectivo é a análise das políticas públicas, importaria ter identificado que políticas públicas tiveram como objetivo resolver problemas de acesso, que efeitos seria de esperar (ou se na sua preparação e justificação estavam apresentados os respectivos objectivos), e o que sucedeu. Custa-me também ver uma referência ao Euro Health Consumer Index (ver uma visão critica deste índice aqui, na sua utilização para avaliação do sistema de saúde) e não haver referência ao relatório de acesso produzido pela ACSS (ainda não atualizado, infelizmente).
Mas este grau de detalhe dificilmente seria compatível com as poucas páginas que podem ter sido atribuídas ao autor para escrever. A sua opção centrou-se não em políticas no lado da prestação de cuidados de saúde, e sim sobre se o objetivo global de concretizar a cobertura universal se encontra satisfeito. O argumento principal, se percebi correctamente, é a necessidade de mais financiamento. Para resolver essa necessidade, parte-se da constatação que as pessoas estão dispostas a pagar mais para o sector da saúde, demonstrado pela existência da ADSE. E defender esta disponibilidade a contribuir com o exemplo da ADSE é diferente de defender a abertura da ADSE.
Num segundo momento, é defendido então que poderia ser constituído um seguro de saúde universal, com contribuições à semelhança da ADSE. Não é claro se depois o modelo de prestação é similar ao da ADSE, ou se os fundos recolhidos servem para reforçar o orçamento da ADSE mas com um modelo de prestação diferente.
Mas vale a pena dividir esta proposta em dois elementos. Primeiro, o que corresponde ao reforço de financiamento do SNS. Segundo, como são usados os fundos adicionais que fossem recolhidos daqui.
Reforçar o financiamento do SNS desta forma terá que ser obrigatório, e como tal será igual a imposto sobre o rendimento a uma taxa marginal de imposto constante (uma percentagem do rendimento). O que significa que é essencialmente um aumento de IRS com outro nome, com uma progressividade de imposto diferente da do IRS. O que se está realmente a propor é alterar o IRS como forma de financiamento do SNS. Se este seguro de saúde público estiver ligado à situação laboral de cada pessoa, terá os problemas (reconhecidos aliás no texto) de como lidar com quem não tem fontes de rendimento explícitas. Não é claro porque é melhor este imposto ou o IRS para o efeito de financiar o SNS. Pode-se argumentar que é um imposto dedicado, mas nada impede que depois da sua criação a transferência do orçamento do Estado para o SNS diminua, para aumentar o papel deste seguro de saúde como fonte de receita pública. E claro tem-se que perceber que a progressividade (no rendimento) que é alterada pelo formato deste imposto é a pretendida socialmente, ou não. Também relevante é o efeito que possa ter no mercado laboral (se tiver valor significativo), uma vez que aumenta a diferença entre salário bruto e salário líquido recebido. Assim, como proposta, a ideia de um seguro público de saúde adicional que tem contribuições com base no rendimento necessita de muito mais detalhe, e não é claro para mim que não venha a ter contradições com outros princípios (como a equidade no financiamento). A noção de que o seguro de saúde público possa ser um “subsistema público da generalidade da população” é contraditória, porque se é para a generalidade deixou de ser subsistema. E a organização da ADSE para financiar a prestação não é compatível com princípios adquiridos de organização do SNS – por exemplo, a ADSE permite a consulta directa de especialistas no sector privado sem ter a coordenação/orientação de um médico de família. Mas isto leva-nos directamente ao segundo ponto.
O segundo aspecto é sobre o que se faz com esses fundos. Se não reforçarem apenas o SNS e tiverem regras especificas de aplicação, pode-se facilmente estar a criar disfuncionalidades no SNS. A discussão neste campo também não é muito clara, mas encerra desde logo, a meu ver, um equívoco (comum, aliás). A ideia de que um seguro de saúde público adicional irá “organizar o financiamento público da prestação privada evitando concorrência e falta de transparência na relação público-privada” não tem justificação. Por um lado, não é explicitado o que é a “falta de transparência” – se se refere ao que tem sido freqüentemente referido como ter profissionais de saúde a trabalhar no sector público e no sector privado, esse é um problema que está associado com a forma de financiamento (parece-me). Se for apenas uma questão de pagar mais pela exclusividade, pode ser feito no contexto do reforço de orçamento do SNS.
O “evitando a concorrência” é também ilusório – a menos que se proíba o exercício da medicina privada, não será possível evitar que um cidadão, pagando do seu bolso ou recorrendo a um seguro privado, escolha ir a um prestador privado em vez de usar o SNS. Estão em concorrência, inevitavelmente. O que se quer dizer é certamente algo diferente, mas que tem de ser tornado mais claro o que é. Além disso, concorrência significa possibilidade de escolha do cidadão, e possibilidade de renovação do prestador de cuidados. A ideia de que a concorrência é sempre má não é boa. Sobre o papel da concorrência no sector da saúde, sugiro esta leitura.
Sobre o capítulo em geral, não querendo ser um capitulo de revisão ou de diagnóstico, deveria ter-se centrado mais no desenvolvimento técnico da proposta que faz – que problema quer resolver, que evidência há desse problema, que opções existem, porque a opção escolhida domina (qual o critério usado para fazer a escolha), teria sido uma forma mais fácil de dar a perceber a proposta, Os dois primeiros elementos (qual o problema, e alguma evidência, estão lá, mas não os outros elementos).
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