Foi ontem disponibilizada a proposta de lei de bases da saúde, disponível no site da Assembleia da República.
Dois tipos de comentários à proposta: sobre o processo e sobre o conteúdo.
Aviso: este vai ser um post longo e técnico em vários pontos.
Sobre o processo, fiquei bastante surpreendido com o processo de apresentar uma nova lei de bases que surge inesperadamente face ao trabalho da comissão criada para o efeito e liderada por Maria de Belém Roseira. Esta comissão fez uma primeira versão, que colocou a discussão pública, tendo depois apresentado uma segunda versão revista, onde acomodou os comentários e sugestões que considerou relevantes. É para mim claro que o Governo, e o Ministério da Saúde dentro deste, poderia fazer o que entendesse com a proposta, acolhendo-a ou não. Contudo, foi pelo menos deselegante para a comissão, para quem nela trabalhou, e para todos os que contribuíram via consulta pública ou audições, surgir uma proposta quase que em contraponto a essa proposta, sem que tivesse sido dado público sinal de desacordo com ela. Coincidindo com a mudança de responsável máximo no Ministério da Saúde, não foi uma forma feliz de conduzir o processo. Enfim, proporcionou pelo menos um momento mediático.
Contudo, esta visão, negativa, do processo, não deve impedir uma leitura séria da proposta de lei de bases (e os primeiros comentários decorrem de uma primeira leitura, cuidada mas ainda assim primeira leitura).
O primeiro comentário genérico que tenho é para a simplificação de linguagem da proposta da comissão de revisão da lei de bases da saúde, mantendo em muitos pontos o essencial das propostas. Aliás, muito do detalhe agora expurgado poderá facilmente surgir, e com vantagem, noutros documentos, que permitirão até ir mais longe nos pormenores do que é razoável conter numa lei de bases.
Mais do que a comparação de versões ponto a ponto, depois de ver faz sentido olhar para este texto da proposta por si.
Numa visão global, a proposta de lei de bases contém os elementos de atualização da anterior lei que foram focados na proposta e na consulta pública da comissão de revisão. Não se torna limitativa do que é o funcionamento do sistema de saúde, pois a forma como as Bases são explicitadas permite flexibilidade. Também tem a desvantagem de permitir leituras mais extremadas nalguns casos, mesmo que não seja isso o que se encontra escrito. Sem prejuízo dos comentários de detalhe abaixo, acabo por ter uma visão em geral positiva da proposta.
(e a partir daqui passo a análise mais técnica)
Vou saltar a exposição de motivos, e passar directamente a comentar alguns dos pontos onde me parece que é útil clarificação adicional.
A Base 1 trata do “Direito à proteção da saúde”, que será consensual. Há porém um aspecto que me parece confuso – assegurar o direito é diferente de dizer através de que instrumentos se concretiza esse direito. É naturalmente ao Estado que o compete fazer, sendo que os instrumentos podem ser públicos, privados com ou sem fins lucrativos (o sector social é sector privado sem fins lucrativos, convém esclarecer, e como tal terá os seus objetivos próprios). O assegurar esse direito tem uma componente forte de proteção contra as consequências financeiras da doença, logo um elemento de seguro em sentido técnico, e componentes de prevenção e de saúde pública.
Diferente é a questão de quem presta os serviços de saúde que sejam considerados necessários. Os dois últimos pontos desta base confundem por estarem a falar de instrumentos concretos. No caso da intervenção do sector público, o instrumento central é o Serviço Nacional de Saúde e os Serviços Regionais de Saúde. Mas o ponto 6 tem provavelmente em mente a prestação de cuidados ou serviços pelo sector privado (com e sem fins lucrativos), e não afirmar que o direito à proteção da saúde passa da responsabilidade do Estado para essas entidades. Um exemplo talvez ajude a clarificar – quando o Serviço Nacional de Saúde contrata com uma entidade do sector privado sem fins lucrativos prestações na área dos cuidados de saúde continuados, a meu ver, o direito à proteção da saúde é assegurado pelo Estado, tendo como instrumento a entidade privada sem fins lucrativos. Mesmo quando há o que se designa por “opting-out” – alguma entidade privada assegurar todos os cuidados de saúde que sejam necessários a um grupo da população, tendo como contrapartida uma transferência de verba do sector público e/ou pagamentos de seguro por parte dessa população, a responsabilidade de garantir o direito continua a ser do Estado, que nesse caso a delega ou transfere operacionalmente. Seria bom ser muito claro neste aspecto, deixando de confundir responsabilidade com instrumentos no assegurar da proteção da saúde.
Na Base 2, sobre direitos e deveres das pessoas, e porque as palavras podem ter pesos e entendimentos diferentes de acordo com quem as lê, quando se afirma que “todas as pessoas têm de o dever de” ser “responsáveis pela sua própria saúde”, tal pode ser entendido como incluindo também uma forte componente financeira de responsabilidade. Não é certamente esse o sentido, pois seria contrário ao que está escrito noutros lados. É no sentido, creio, de deverem cuidar da sua saúde, e por isso outra formulação seria melhor. O mesmo se pode dizer quanto ao “Respeitar os direitos de outras pessoas”, que é demasiado genérico, e menos claro do que a redação de “respeitar os direitos das outras pessoas em contexto de saúde e os dos profissionais de saúde”.
Retomo também aqui um comentário apresentado no âmbito da consulta pública da proposta inicial da comissão: “Deve-se tornar claro que é desejável que as pessoas participem no desenvolvimento científico em nome das gerações vindouras, observados os critérios usuais para a respetiva participação. O dever de contribuir para o progresso do conhecimento da medicina deve ser reconhecido em termos da sua nobreza e como elemento importante da participação do cidadão no sistema de saúde.” Não será dever, mas é também um sinal do que é a responsabilidade de cada cidadão no campo da saúde.
Na Base 3, Politica de Saúde, é afirmado que a política de saúde visa a “obtenção de ganhos em saúde”. É certamente verdade, mas tal como é depois dito em vários pontos, não é a qualquer custo. O que se pretende é a obtenção de ganhos em saúde, adequados aos recursos disponíveis. Não significa isto que se começa por limitar os recursos, significa que há ganhos de saúde que podem não justificar os recursos que neles se gastam (e que deixarão de ser usados para outros fins). É um pormenor técnico, reconheço, mas importante, até porque mais à frente se fala de instrumentos que têm precisamente o propósito de garantir que se faz o melhor possível face aos recursos que é preciso utilizar. E mesmo em termos de objetivos, no ponto 2-d) desta mesma base é dado outro, como a proteção face aos riscos financeiros da doença (seguro), e no pondo 2-h) “a gestão dos recursos disponíveis segundo critérios de efetividade, eficiência e qualidade”.
Neste último ponto, retomo também um comentário apresentado a propósito da consulta pública da primeira versão, “sem definição concreta do que é eficiência e [efetividade], o texto deixa margem de ambiguidade para o que exactamente implica. Por exemplo, apenas relacionado com o termo de eficiência podemos ter eficiência no sentido de não desperdício de recursos (eficiência tecnológica no jargão económico), eficiência no sentido de menor custo para os resultados que se pretendem obter (eficiência alocativa, no jargão económico) e eficiência económica (que resultados assistenciais se pretendem alcançar, no balanço de custos e benefícios resultantes da prestação de cuidados de saúde). É duvidoso que o detalhe destas noções de eficiência devam fazer parte da lei de bases, embora por outro lado não o fazer deixa ambiguidade quanto ao pretendido”. Não tenho resposta para a melhor de forma de resolver esta questão de escrita. Talvez o termo eficiência global, para abarcar a versão mais geral?
Ainda nesta Base, tenho preferência por excluir a referência ao “reconhecimento da relevância económica do sector da saúde”, que não deve ser um principio para a politica de saúde. A política de saúde não deve, a meu ver, estar centrada na atividade económica associada com a prestação de cuidados de saúde. Se houver alguma intervenção especifica destinada a essa atividade económica fará mais sentido que seja do âmbito do Ministério da Economia. É evidente que a politica de saúde tem que ter em conta, como restrição do que pretende fazer, que os prestadores de cuidados de saúde, públicos e privados, com ou sem fins lucrativos, têm atividade económica autónoma. Mas não deve ser objetivo. Ou, de forma talvez mais clara, quando política de saúde não deve impor lucros negativos ou resultados de exploração negativos a quem presta cuidados de saúde (restrição de não tornar economicamente inviável quem os presta) mas não tem o objetivo de dar o máximo lucro ou resultado positivo a quem presta esses serviços.
Por im, a “divulgação transparente de informação em saúde”, no sentido de informação sobre a saúde coletiva e a forma como é promovida e protegida. Não se espera que seja informação individual de saúde, aliás protegida numa outra Base.
Na Base 5, Responsabilidade do Estado, surge um ponto 4 que tem uma parte de reconhecer a utilidade da Entidade Reguladora da Saúde, embora lhe dando papel explicito na defesa da concorrência relativamente às atividades económicas realizadas no sector da saúde. Como existe uma Autoridade da Concorrência nacional, que também pode intervir no campo da saúde, que tem procedimentos e princípios específicos de defesa da concorrência, julgo que seria de evitar sobreposição de intervenções (basta retirar aqui o “defesa da”, ficando apenas a promoção).
Saltando para a Base 16, Serviço Nacional de Saúde, surge aqui a designação do Serviço Nacional de Saúde como a entidade que concretiza a responsabilidade do Estado na proteção da saúde – ou seja, no papel segurador-, sendo que essa concretização tem também um forte elemento de prestação directa de cuidados de saúde.
Nos princípios do SNS, um ajustamento e uma clarificação parecem-me necessários. O ajustamento é no princípio de equidade, que deve corrigir efeitos de desigualdades injustificadas no acesso aos cuidados. O adicionar injustificadas permite dizer que uma pessoa de mais idade ou com maior carga de doença pode ter acesso desigual (maior acesso) sem que tal seja problema; é na verdade promoção da equidade, pois o que se pretende é o que o acesso seja igual para igual necessidade e desigual para desigual necessidade, mas não é isso que está escrito no principio (embora seja provavelmente o espirito com quem foi escrito).
A clarificação é quanto à cobertura racional e eficiente versus proximidade – terá que ser feito nalguns casos um equilíbrio entre ter maior proximidade e ter maior qualidade e eficiência nos cuidados prestados (sobretudo nos casos em que a maior qualidade dependa de conseguir ter melhor desempenho pela prática).
Na Base 18, Organização e funcionamento do Serviço Nacional de Saúde, será importante no ponto 1 especificar que o Estado deve “assegurar os recursos necessários e suficientes à efetivação do direito à proteção da saúde”. Serem necessários podem ser poucos. Serem suficientes sem serem necessários podem ter desperdício.
[nota: na primeira versão deste post saltei um comentário ao ponto 3, que foi adicionado depois de ter sido alertado para essa omissão no comentário.]
No ponto 3, é dito que “A gestão dos estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde é pública, podendo ser supletiva e temporariamente assegurada por contrato com entidades privadas ou do setor social,” e aqui o elemento central é o “temporariamente”, que sem limite temporal permite também essencialmente o mesmo que o que estava escrito, mesmo sabendo que há quem vá ler de forma restritiva e quem vá ler de forma mais aberta. O “temporariamente” pode ser 30 anos de uma PPP infra-estrutural. Era preferível a redação anterior, mas se esta satisfaz os equilíbrios políticos, uma vez que cada um entenderá o “temporariamente” como mais gostar, não limita indevidamente. Se o temporariamente fosse definido como inferior a 3 ou 5 anos, então inviabilizaria as PPP como instrumento disponível para o Serviço Nacional de Saúde, a ser usado quando tiver vantagem, e seria a meu ver um erro da nova proposta de Lei de Bases.
No ponto 4, não vejo razão para privilegiar “a autonomia de gestão, os níveis intermédios de responsabilidade”, deverá escolher-se os níveis que melhoram se adequam a assegurar uma prestação eficiente, entendida como dar os cuidados adequados, com o custo mínimo de o fazer. Nalguns casos poderá ser mais descentralizada do que noutros. Ter “verdades absolutas” sobre modelos de organização não é desejável, e como princípio deve escolher-se o que for mais favorável em cada caso.
No ponto 6, é referida a programa plurianual de investimentos. É obviamente uma boa prática que deve ser seguida. Aqui tenho apenas na “lista de desejos” que as regras desse plano de investimentos possam ter compromissos credíveis com o seu respeito pelo Ministério da Saúde e pelo Ministério das Finanças (pelo menos nos casos de investimento acima de um valor que seja pré-determinado).
No Base 19, Financiamento do Serviço Nacional de Saúde, gosto do ponto 1 pelo que não diz (não considera e bem as taxas moderadoras instrumento de financiamento). Tenho algum receio do ponto 2, que fala em definição de critérios objetivos e quantificáveis para o financiamento do SNS, pois aqui deve-se evitar ideias erradas de regras automáticas baseadas comparações pseudo-científicas com médias internacionais (por exemplo).
A Base 21, Contratos para a prestação de cuidados de saúde, será provavelmente das mais polémicas na discussão pública, pois refere-se aos contratos com entidades privadas, com ou sem fins lucrativos, com o qualificativo de “condicionados à avaliação da sua necessidade” – e o ponto central será o significado de “necessidade”. Se não houver necessidade sempre que o Serviço Nacional de Saúde fizer a prestação direta, mesmo que com custo muito superior, levará a um SNS com mais despesa e que deixará de fazer algumas coisas. Se “necessidade” incluir a noção de que se o sector privado, com ou sem fins lucrativos, fizer serviço de qualidade igual com menor custo para Serviço Nacional de Saúde, existe “necessidade” de usar o modo mais eficiente e com isso libertar recursos para outras intervenções, então fará mais sentido. E claro, não há “necessidade” se o serviço prestado pelas entidades privadas, com ou sem fins lucrativos, for mais dispendioso do que a prestação direta pelo Serviço Nacional de Saúde.
A Base 22, Seguros de saúde, também pretende introduzir clarificação na componente de seguro, mas infelizmente não o faz. Os seguros de saúde (privados, suponho, já que o SNS é tecnicamente um seguro de saúde público) podem ser de três tipos: oferecem coberturas que duplicam o que o Serviço Nacional de Saúde oferece (por exemplo, consultas de especialidade, eventualmente em entidades privadas), oferecem coberturas que o Serviço Nacional de Saúde não oferece (por exemplo, se o Serviço Nacional de Saúde decidir não comparticipar um medicamento por não o considerar justificado em termos de efeitos que produz, nada impede que uma seguradora inclua a utilização desse medicamento na cobertura que oferece) e oferecem coberturas que completam a cobertura financeira do Serviço Nacional de Saúde (por exemplo, um seguro de saúde que cubra a parte do preço de medicamentos prescritos no Serviço Nacional de Saúde que cabe ao cidadão). Assim, não é claro se o termo complementar se aplica ao segundo, ao terceiro tipo de cobertura ou a ambos. Também não é claro porque é que o Estado pretende impedir cidadãos de fazerem seguros de saúde privados que lhes permitam ir a consultas disponibilizadas em contexto privado, por exemplo, que também são oferecidas em contexto público.
Bom, para uma primeira leitura, creio que chega de cansar mais quem chegou até aqui!