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As notícias da manhã…

8 comentários

A manhã de hoje começou com um alerta para uma notícia de Jorge Correia na Antena 1 – utentes a pagarem consultas em que não estiveram presentes. O título exacto é  “Hospital Garcia de Orta obriga doentes a pagar taxa moderadora por consulta que nunca tiveram.”

Obviamente, este título cria logo estranheza e uma reacção adversa. Vejamos ainda assim, e com base no que tem sido transmitido, a racionalidade (ou falta dela) da situação.

É natural que um médico de família queira consultar um especialista sobre um caso. A reunião para discussão do caso sem a presença do doente é também em si mesma razoável, e julgo que não será contestada.

A “estranheza” resulta então de ser cobrada uma taxa moderadora ao utente. Olhemos também com cuidado para este aspecto. A reunião com o médico especialista, a pedido do médico de família, tem um “custo” evidente – o especialista deixará de fazer alguma outra consulta ou actividade no hospital para atender a este pedido de reunião. Assim, é natural que haja um “preço” a ser pago por esta actividade, estando os dois médicos em entidades distintas. É razoável, a meu ver, que haja um fluxo financeiro a favor da instituição do médico especialista. Quem o deve pagar? naturalmente quem originou a reunião, ou seja a entidade onde está o médico de família. Deve o utente pagar a taxa moderadora? neste contexto, não, uma vez que o utente não teve qualquer intervenção ou acção que conduzisse à utilização de recursos (neste caso, o tempo do médico especialista). Ou seja, para além das reacções mais acaloradas que estão e irão certamente surgir, a cobrança desta taxa moderadora é certamente um excesso de zelo, e não tem qualquer suporte lógico de funcionamento do sistema. Tal não invalida que faça todo o sentido o hospital receber um pagamento pela utilização de um seu recurso. É o modo pelo qual se procura esse pagamento, a taxa moderadora, que está errado, não o princípio subjacente.

Quanto há integração de centros de saúde com hospitais, nas unidades locais de saúde, este aspecto deixa de ser relevante, pois todos os pagamentos seriam internalizados dentro da instituição. Nos outros casos, para clarificação do sistema, é até desejável que existam fluxos financeiros que venham a reflectir a procura e utilização de recursos escassos, mas segundo o princípio de que deve ser pago por quem origina essa procura.

Provavelmente, haverá também propostas de que então o utente deve estar presente. Aqui tendo a discordar – poderá ser apenas uma perda de tempo para ele, ou para um dos médicos se a presença do utente se transformar numa consulta normal. Numa situação extrema, e que não me parece razoável, em que o utente pudesse ter direito de veto sobre a realização da reunião, então como participava na decisão sobre a existência da reunião poderia ser pedida taxa moderadora. Mas honestamente, parece-me ser “esticar” em excesso o argumento, e não creio que se deva ir por esse caminho. A outra alternativa, ainda mais rebuscada, seria argumentar que o médico de família ao ser cobrada a taxa moderadora ao seu doente teria maior cuidado na decisão (“moderaria” o seu pedido). Também não creio que possa servir de justificação.

A realização de consultas sem presença do utente, com pagamento da taxa moderadora por parte do utente, tem também um outro “perigo” para o Serviço Nacional de Saúde. Primeiro, torna-se uma forma simples de uma entidade aumentar o número de consultas que faz, se tiver objectivos de número de consultas que ache difícil atingir com a presença de utentes, bastará multiplicar estas outras consultas. É um aspecto a exigir cuidado (por exemplo, fazendo auditorias aleatórias, feitas pelos pares, para detectar se foram ou não adequadas). Segundo, torna-se uma forma de ter receita fácil, na medida em que uma parte que paga, o utente, não tem qualquer poder de decisão sobre o que deu origem ao pagamento. Em “economia da saúde” fala-se por vezes de indução da procura (o sistema de saúde induzir maiores consumos sem necessidade), aqui parece surgir a novidade da “indução da receita via taxa moderadora”.

Resumindo, o princípio de haver pagamento é salutar; a forma como foi aplicado, com taxa moderadora cobrada aos utentes, é desajustada.

Dada a minha opinião, fico apenas com a dúvida sobre a quem deverei mandar a nota de honorários sobre a opinião emitida (mesmo que não tenha sido pedida), será a minha taxa moderadora de consulta sem presença da entidade.

ps. ao final do dia, irei procurar adicionar os links de notícias da Antena 1 sobre o assunto.

Desconhecida's avatar

Autor: Pedro Pita Barros, professor na Nova SBE

Professor de Economia da Universidade Nova de Lisboa.

8 thoughts on “As notícias da manhã…

  1. Paulo Varela's avatar

    Também discordo, mas o doente também não tem poder de decisão quando é referenciado do CS/USF para o Hospital. Se vai fazer este trajecto é por incompetência do MGF ou por indicação para que o tratamento seja feito a esse nível.
    Também não tem poder de decisão quando o Médico Hospitalar marca 2ª e 3ª consultas.
    Então para que servem as taxas moderadoras?

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  2. Paulo Varela's avatar

    Como conclusão da notícia e da “magia dos números” diria que nos Hospitais há Economistas NA Saúde a mais e Economistas DA Saúde a menos…

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  3. NC's avatar

    Sendo a consulta médica sem a presença do utente uma das prestações de saúde realizadas pelos Hospitais e não estando estas consultas excluídas do pagamento de taxa moderadora, parece que não resta outra alternativa aos Hospitais que não seja proceder à sua cobrança. Ou então altere-se a legislação que obriga a registar estas consultas no processo clínico do utente.

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  4. Pedro Pita Barros, professor na Nova SBE's avatar

    @Paulo – no caso de referenciação, também defendo que deva existir um fluxo financeiro nessa decisão (detalhei o argumento no livro Três Olhares sobre o futuro da saúde), embora não tenha tocado na questão da taxa moderadora. Na medida em que o doente possa influenciar a decisão de referenciação, por a pedir ou a induzir sem necessidade pelas suas afirmações na consulta, não me custa que haja uma taxa moderadora também para o utente. A questão de na decisão de realizar a consulta sem presença do utente, este não ter de facto qualquer intervenção parece-me razão suficiente para excluir qualquer taxa.

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  5. Pedro Pita Barros, professor na Nova SBE's avatar

    @NC – creio que há a alternativa de alterar a legislação para não haver pagamento da taxa moderadora, mesmo que seja mantida a obrigação de registar as consultas no processo clínico do doente. Por outro lado, não tenho a certeza (e poderá corrigir-me se estiver errado) se não é possível usar uma outra figura jurídica para estas reuniões entre médicos de modo a que exista um pagamento. Aliás, duas perguntas para as quais gostaria de ter resposta são:
    a) nas ULS todas as reuniões deste tipo são também objecto de taxa moderadora? (isto porque as ULS já internalizam dentro da organização as vantagens destas reuniões)
    b) será esta uma forma de também aumentar o número de consultas realizadas pelo hospital, para as suas estatísticas de movimento assistencial?

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  6. Marinho Rosa's avatar

    Bom , poderia ser pior: o doente teria de pagar duas vezes, e valores diferentes, um a vez que consome tempo a dois médicos de niveis de cuidados também diferentes.

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