A investigação realizada por um meio de comunicação social sobre os pagamentos de produção adicional (pagamentos SIGIC – Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia) no serviço de dermatologia do Hospital (Unidade Local de Saúde) de Santa Maria foi importante. Apesar de terem passado várias semanas, não há ainda total clareza sobre o caso, nem é evidente que conclusões e lições se vão retirar.
A meu ver, há diversas “camadas” de questões destapadas por este caso, e a pressa de encontrar uma solução para o que possa ser visto como “o” problema poderá acabar por gerar a prazo outras complicações. Afinal, o que é “o” problema?
A ideia inicial que presidiu à criação do SIGIC era e é boa – evitar tempos excessivos de espera, através da utilização de capacidade livre onde estiver disponível, dentro do SNS. É colocar em prática o famoso “funcionar em rede” frequentemente falado, remunerando quem ajudar a solucionar o problema de tempos de espera excessivos. E foi criado há duas décadas.
Como nasce o SIGIC: teve como origem garantir acesso a intervenções onde havesse capacidade disponível, sendo que o hospital de origem não tinha capacidade de respeitar os tempos de resposta que se pretendiam / pretendem garantir.
A lógica inicial implicava a emissão de vale cirurgia pelo SNS quando se excede o tempo de espera pré-determinado, para que o doente possa ir a outro local. Esta é uma opção melhor do que programas especiais de recuperação de listas de espera, a medida de política mais popular antes da criação do SIGIC.
Assim, o ponto de partida era o de doentes de um hospital que não tivesse capacidade de resolver a respetiva situação no tempo máximo garantido teriam a oportunidade de ir a outro hospital, que seria então remunerado por essa atividade. Contudo, a dada altura, passou-se a permitir que os profissionais de saúde do próprio hospital passassem a poder fazer esta recuperação de listas de espera, criadas pela sua incapacidade de tratarem os doentes em atividade no período normal de funcionamento. Naturalmente, esta possibilidade cria incentivos perversos (isto é, contrários ao objetivo inicial de reduzir os tempos de espera, pois criar lista de espera e maiores tempo de espera na atividade normal leva a que seja necessário recuperar essa lista de espera por atividade adicional). Reconhecendo esta possibilidade, passou-se a requerer que a atividade em funcionamento normal tivesse uma relação com a atividade possível em recuperação de lista de espera. Contudo, as regras não especificam condições relacionadas com a complexidade dos casos. E mesmo assim torna recompensador aumentar a atividade em funcionamento normal mantendo sempre uma possibilidade de depois fazer atividade adicional. Além do que pode contribuir para desorganizar o próprio trabalho interno dos serviços (quem pode fazer atividade adicional? Como é distribuída?). E com o tempo o SIGIC fica transformado em fonte de rendimento adicional, quase vista como permanente. Em lugar de ser uma solução para o doente ser intervencionado a tempo e horas torna-se uma forma de remuneração para um hospital reter profissionais de saúde dando-lhes melhor remuneração, mesmo que implicitamente e mesmo que não seja assumido que está a ter esse papel.
No caso do SIGIC, o valor da intervenção (preço pago) é definido pela complexidade do caso. Dado que o preço está fixado, a forma de aumentar o que se recebe é dizer que a complexidade é elevada (dentro da margem possível), ou então artificialmente exagerar essa complexidade. Daqui decorre também a possibilidade de se definir o preço que se recebe se o mesmo médico estiver a codificar a complexidade e realizar as intervenções. Como provavelmente há sempre um certo grau de discricionariedade na avaliação dos casos, em caso de incerteza a tendência para classificar melhor estará presente e com o passar do tempo passa a prática habitual, sem ser questionada. É preciso mecanismos de controle interno, e auditorias (no sentido de regularmente verificar como se está a codificar, e procurar retificar e melhorar processos).
Estes problemas decorrem apenas da rotina e do não questionamento do que é feito, com pequenos ajustamentos sucessivos de funcionamento que individualmente poderão não ter efeito visível mas cumulativamente ao final de vários anos se tornam fonte de ineficiência.
Adicionalmente, e para casos extremos, deverá haver uma análise regular de possíveis situações de fraude – é possível e deve ser feita (existe/existia uma unidade anti-fraude) – mais do que auditoria quando há alerta. Prevenir a fraude, tendo mecanismos de deteção que sejam dissuasores deve ser parte do sistema global.
Assim, podemos ter simultaneamente falhas do sistema SIGIC, falhas da organização e falhas individuais envolvidas neste caso. Os inquéritos em curso deverão ser realizados de forma a separar o que é cada um destes elementos.
Onde identificar o que possa ter falhado,e que foi colocado em evidência?
1) O desenho global do SIGIC – falha do Serviço Nacional de Saúde, nomeadamente do Ministério da Saúde quando definiu, redefiniu e alterou as regras, ao longo do tempo.
2) A possibilidade de conflito de interesses na classificação – falha da organização, ao permitir que quem beneficia seja também quem defina o pagamento que recebe, mesmo que indiretamente.
3) Decisão individual, de aproveitar para gerar atividade para si próprio, racionalizando-a como necessária e com a definição de preço a receber via codificação da complexidade.
4) Controlo e monitorização com verificação automática de erros e de problemas de classificação, por parte da organização.
Qualquer solução futura que tenha o mesmo objetivo do SIGIC atual tem de a) incluir mecanismos automáticos de alerta, b) evitar conflitos de interesse – em concreto, considerar voltar ao início do sistema em que um hospital (Unidade Local de Saúde atualmente) não pode recuperar a sua própria lista de espera e também quando a atividade regular da unidade está abaixo do naturalmente esperado, perder orçamento ou mesmo fechar serviços, c) ter regras que reduzam as oportunidades de abuso, através de análise regular do funcionamento do sistema (com as atuais possibilidades de análise digital, tal poderá ser feito quase em tempo real), incluindo codificação de complexidade de casos e auditorias aleatórias.
Uma avaliação do funcionamento de duas décadas do SIGIC deve ser feita, estabelecendo claramente os efeitos que estiveram associados com as alterações de regras, ou com alterações que se tenham registado internamente aos hospitais. Esta avaliação do SIGIC tem que passar forçosamente por uma avaliação da produtividade de cada serviço em cada hospital, de como essa produtividade influenciou a atividade normal e a atividade adicional, incluindo como influenciou o trabalho das equipas envolvidas. É um trabalho que vai levar o seu tempo, mas sem o fazer creio ser complicado definir um novo sistema alternativo ao SIGIC.
Sendo os elevados tempos de espera para intervenção cirúrgica um problema, a utilização interna ao Serviço Nacional de Saúde usando capacidade onde estiver disponível em cada momento, e tendo um sistema de preços (pagamento adicional) envolvido, tem de ser pensada adequadamente, procurando-se perceber todos os efeitos que possa ter, mesmo os inesperados.
