Momentos económicos… e não só

About economics in general, health economics most of the time

De Unidades Locais de Saúde Universitárias a Centros Clínicos Universitários?

Deixe um comentário

Foi disponibilizado recentemente o relatório final da comissão técnica independente sobre as unidades locais de saúde (ULS) universitárias.

A principal conclusão não é inesperada: a recomendação para a “transformação” das atuais ULS de “cariz universitário” (as que têm uma ligação a uma faculdade de medicina) em Centros Clínicos Universitários (CCU).

Mais importante que a designação é saber se estas ULS têm necessidade de um modelo de governação e de um modelo de financiamento distinto.

A proposta (recomendação) feita pela Comissão dá uma resposta afirmativa, e apresenta, no documento, as bases da proposta.

O ponto de partida é a exigência de organizar de forma coordenada três grupos de atividades: i) clínica; ii) formação básica e avançada; iii) investigação e inovação.

Como foram identificados mecanismos de governação e de financiamento distintos, surge a proposta do novo modelo organizativo dos CCU (Centros Clinicos Universitários).

Esta proposta, tendo do meu ponto de vista uma apreciação positiva, merece alguns comentários, sobretudo ligados a detalhes operacionais.

Por ordem cronológica de apresentação no documento:

A tutela partilhada entre Saúde e Educação (suponho que será Ministério do Ensino Superior e Ciência, se vier no futuro a ser feita a separação que já existiu) faz sentido, naturalmente. Adicionalmente ao que é dito, há vantagem em definir uma unidade operacional ou comissão conjunta que possa dar uma continuidade de acompanhamento dentro dos Ministérios relevantes.

    Quando se refere a colaboração institucional com entidades externas, a operacionalização que venha a ocorrer deverá acomodar de forma separada, e até com instrumentos diferentes, dois tipos de colaboração: a) a difusão interna, em Portugal, de novos conhecimentos científicos e de prática; b) a participação na fronteira de geração de conhecimento internacional, com destaque para as colaborações a nivel da União Europeia. 

    São duas atividades de natureza muito diferente, ambas úteis e necessárias ao desenvolvimento dos CCU, e irão precisar de quadros diferentes para os vinculos institucionais colaborativos que são mencionados.

    Sobre a existência de um Conselho Nacional dos Centros Clinicos Universitários, não ficou clara a sua necessidade. Em concreto, o que será discutido e acordado neste conselho que não seja ou não possa ser discutido em algum outro conselho ou organismo que já exista?

    A sugestão de uma governação com”duas camadas” surge como adequada, bem como a sugestão de ter cruzamento de vogais executivos entre o braço de atividade clinica (ULS) e o braço de atividade universitária (a faculdade de medicina), garantindo a representação permanente de cada um dos lados no orgão executivo do outro. 

    A reciprocidade invocada é importante para a coordenação. Será provavelmente útil reforçar essa ligação tendo elementos técnicos de apoio que sejam comuns aos dois orgãos executivos para assegurar que há permanente atualização, de forma automática, sobre as decisões tomadas em cada um dos braços do CCU. 

    É explicitado que o “vogal executivo indicado pela Escola ou Faculdade de Medicina assumirá o pelouro das atividades pedagógicas, cientificas e de inovação no âmbito do Centro Clínico Universitário”. Tal garante ao braco universitário a condução desse aspecto. Embora não fosse um detalhe que me ocorresse, é uma boa solução para o objectivo pretendido.

    Nas recomendações referentes aos recursos humanos, gostaria de ter visto mais detalhe no que se refere à circulação de profissionais entre a área clínica e a área académica. Em particular, creio ser relevante que essas regras também permitam passar de uma área de um CCU para outra área de outro CCU. A mobilidade profissional deverá ser favorecida pelo modelo adoptado. Um outro aspecto relacionado é como serão interligadas e participantes as três diferentes culturas envolvidas, hospitalar, cuidados de saúde primários e académica. 

    A consideração de provas públicas para progressão profissional no âmbito dos CCU fornece um meio de escrutínio científico e profissional importante.

    Gostaria de ter visto uma lógica mais desenvolvida para o ciclo de vida profissional. É referido que são permitidos “ajustes conforme as necessidades institucionais e os interesses e competências dos profissionais”. 

    Seria útil conhecer o que deve ser entendido como o percurso típico de equilibrio entre as atividades clínicas e as atividades académicas, ao longo da vida profissional. Pressuponho que não seja o mesmo tipo de equilibrio ao longo de toda a carreira profissional no CCU.

    É dito que os CCU “deverão contribuir para a equidade contratual”. Esta parte parece-me complicada de assegurar se não houver grande clareza sobre o que se pretende em cada uma das carreiras, clínica e docente. É normal que haja auto-seleção dos profissionais de acordo com as suas capacidades e preferências. 

    A pressão salarial numa e noutra carreira é natural que dependa de quantos profissionais queiram estar numa carreira face aos lugares nela disponíveis (seja pela negociação direta de condiçoes salariais, seja pela disponibilidade de lugares a serem preenchidos, seja qualquer outro factor de atratividade da carreira, o que fará parte do “salário implícito”).

    É importante a consideração de tempo protegido enquanto “oportunidade” colocada à disposição e não como “direito”.

    É prevista (recomendada) flexibilidade no tipo de envolvimento dos profissionais, permitindo que cada CCU possa desenvolver uma filosofia interna própria, decorrente das suas tradições e das suas ambições no espaço nacional e no espaço europeu. Em particular, esta flexibilidade pode permitir situações como períodos sabáticos para atualização de conhecimentos ou para maior inserção na prática clinica (consoante o ponto de partida do profissional de saúde) e para o acolhimento temporário de pessoas de outras ULS (CCU ou não).

    No capítulo do financiamento, há também pontos a destacar.

    A recomendação de os CCU promoverem “a sua própria sustentabilidade, garantindo um nivel de financiamento alinhado às necessidades reais”. Sendo salutar como princípio é difícil perceber como pode ser concretizado. 

      As actividades principais, clinica e académica, têm os preços e os volumes determinados por entidades externas ao CCU: não pode aumentar o preço dos serviços que presta, não pode estabelecer livremente propinas no braço académico, não pode rejeitar tratar doentes em caso de necessidade, não escolhe o número de alunos. 

      Os rendimentos de propriedade intelectual que existam, ou venham a existir, não serão, suspeito, a principal fonte de receitas do CCU. De certo modo, este aspecto é reconhecido quando se discute o aprofundamento do modelo de financiamento por capitação afastada, elemento que vejo como essencial neste contexto dos CCU. 

      A discussão será essencialmente técnica. Para a definição da capitação ajustada é necessário definir qual a população servida para cada conjunto de serviços organizados por diferenciação e complexidade de acordo com a rede de referenciação. 

      Sendo as unidades clínicas dos CCU um misto de cuidados de proximidade (a componente de cuidados de saúde primários da ULS parte do CCU) e de cuidados muito diferenciados, incluindo referenciação de doentes de elevada complexidade de outras us, o número de pessoas abrangido (o “capita” ) será diferente.

      E aqui há duas soluções: ou a capitação ajustada é “fatiada” por tipo de serviços para acomodar redes de referenciação ou tem de existir um sistema de preços internos dentro do SNS. Um exemplo simples ajuda a ilustrar a minha preocupação. Tomemos duas zonas, A e B, que têm populações nA e nB

        Estas populações têm necessidade de dois grandes grupos de cuidados de saúde, 1 e 2, em que o “custo per capita” é c1 > c2 (ou seja, o tipo 1 tem cuidados mais diferenciados e de custo mais elevado). 

        A zona A é servida por um CCU que tem capacidade para tratar ambos os tipos de necessidade. A zona B é servida por uma ULS que tem capacidade de satisfazer as necessidades de tipo 2 e referência as necessidades de tipo 1 para o CCU. 

        Assim, o CCU terá despesas globais (nA + nB) c1 + nA c2, enquanto a ULS terá despesas c2 nB

        O total de despesas per capita na zona A é (c1 + c2), igual ao total da despesa per capita na zona B (a despesa total depende da população de cada zona).

        A versão de financiamento por capitação ajustada tomando por base a população de cada região significa que o CCU deverá receber, para ter “financiamento equilibrado”, per capita (c1 (nA +nB) + c2 nA) /nA = (c1+c2) + c1 nB/nA

        Na versão de capitação “fatiada” recebe c1 per capital para uma população abrangida pelos serviços 1 que disponibiliza dada por (nA +nB)  e recebe c2 per capita pelos serviços 2 que disponibiliza à população nA

        Matematicamente, o volume global de receitas é o mesmo, apenas a forma de as apresentar difere. 

        Numa segunda opção do modelo de financiamento, cada entidade recebe por capitação a despesa esperada da sua população da área de abrangência e paga pelos serviços que usar, para a sua população de abrangência, de outra unidade. 

        Ou seja, o CCU recebe (c1+c2) nA, sendo (c1+c2) o valor da capitação enquanto a ULS (na zona B) recebe na (c1+c2) nB. E quando a população da zona B recorre ao CCU para os serviços de saúde de tipo 1 tem de pagar um “preço interno ao SNS” de p = c1 dando receita total c1nA como transferência da ULS para o CCU.

        Em termos matemáticos as receitas globais de cada entidade são iguais às do modelo de financiamento por capitação ajustada (” fatiada”). Contudo, há uma diferença importante: se a ULS puder direcionar os seus doentes com necessidades tipo 1 para diferentes CCU em lugar de ter uma referenciação obrigatória para um único CCU. 

        O que a recomendação da CTI me parece sugerir é a adoção da capitação ajustada como base, e ter “preços internos ao SNS” caso haja fluxo de doentes, que deveria contudo ser residual porque esses pagamentos seriam aplicados apenas a transferências para fora da referenciação definida. 

        Se a capitação ajustada tiver como base as despesas de base histórica de cada unidade face à população da sua área de abrangência, então há implicitamente uma aproximação ao modelo de capitação ajustada (“fatiada”). 

        A sugestão de um fundo centralizado de compensação é importante para compensar desequilíbrios acentuados entre o cu nos custos de tratar doentes de muita elevada complexidade (e custo). As regras de definição dos fluxos (contribuições e recebimentos de cada CCU) deverão ser estabelecidas de forma a preservar incentivos para a procura a eficiência de funcionamento e para evitar a seleção de casos (ou seja, evitar a tentação de afastar os doentes mais complexos, ainda que de forma implícita)

        A preocupação com o financiamento específico das atividades de “Ensino, Investigação e de Inovação” é adequada, embora haja sempre alguma flexibilidade na gestão de verbas dentro do CCU. 

          É provável que seja de completar os requisitos de transparência na utilização de recursos em atividades académicas e em atividades assistenciais com algum mecanismo de auditoria (até eventualmente aleatório).

          Um aspecto que não resulta claro sobre a diversidade de fontes de financiamento é se todas elas deverão estar dentro do perímetro orçamental público, ou não. Ter financiamento canalizado por entidades ligadas ao CCU mas que não estão dentro do perímetro orçamental público é algo que será aceite? Tem a vantagem de maior flexibilidade de gestão, tem a desvantagem de um menor escrutínio sobre o uso dessas verbas.

          É recomendado, e bem, que se tenha uma visão plurianual. Aqui, creio que até se justifica um maior detalhe. Deverá ser clara uma visão executiva de orçamento e sua gestão a 3 ou a 5 anos, e uma visão estratégica de 10 anos. A primeira, visão de gestão, deverá atualizada anualmente para o horizonte dos três anos seguintes, a segunda atualizada a cada três anos para os dez anos seguintes (e com uma intervenção importante da primeira “camada” de governação e não apenas da comissão executa, ou seja, dar um papel claro ao Conselho de Administração não executivo).

          Na componente de monitorização, adiciono apenas que se deverá automatizar o mais possivel a recolha de informação de rotina para esse fim e a criação de relatórios. A informação é recolhida diretamente tratada por quem monitoriza em lugar dos CCU terem de elaborar e aprovar internamente relatórios antes de serem enviados. Poupa-se tempo e tentações de “embelezar”a informação prestada.

          Finalmente, embora a CTI tenha uma preferência por manter os atuais Centros Académicos Clínicos, creio que seria mais simples os atuais Centros Académicos Clínicos desaparecerem enquanto tal na sua formulação atual e ser desenvolvido, se for sentida a sua falta, um novo formato de colaboração envolvendo os CCU. 

            É usual em Portugal ter-se resistência a fazer desaparecer organismos. Neste caso, a necessidade de evolução justifica extinguir e criar de novo se for necessário e ajustado ao novo contexto, mais do que adaptar e “torcer” o que foi pensado fora da existência de CCU, para ter maior capacidade de evitar duplicações geradoras de confusão. É importante usar o que se aprendeu com a criação e funcionamento dos Centros Académicos Clínicos. Não há que ficar presos à sua existência.

            Globalmente, a CTI produziu uma recomendação clara, alinhada com o espirito que presidiu à sua criação. A recomendação é baseada numa justificação apresentada em detalhe e com linhas orientadoras explicitadas. Podendo haver ajustes decorrentes de alguma discussão pública que se gere entretanto, está estabelecido o caminho para uma decisão política fundamentada.

              Por curiosidade, segue-se um resumo do documento da CTI-ULS, obtido por instrumento de inteligência artificial (sem cortes ou correções face ao que saiu). Como nota, depois de ler o resumo automático, considero haver vantagem em que se leia o documento original na integra. O relatório inclui também depoimentos de várias pessoas, individualmente ou em representação de entidades, que foram ouvidas no processo. Se só tiverem possibilidade de ler uma, sugiro a de Alexandre Lourenço. 

              Resumo do Relatório Final da Comissão Técnica Independente sobre as ULS Universitárias (obtido por aplicação de ferramenta de inteligência artificial)

              O relatório analisa a transformação das Unidades Locais de Saúde (ULS) universitárias em Centros Clínicos Universitários (CCU), destacando a necessidade de uma reformulação estrutural para alinhar melhor a prestação de cuidados de saúde com o ensino e a investigação. Esta mudança tem como objetivo modernizar o Serviço Nacional de Saúde (SNS), aproximando-o de modelos internacionais que promovem a integração entre assistência clínica, formação médica e inovação científica.

              A atual estrutura estatutária das ULS universitárias não reflete adequadamente a complexidade da sua missão, limitando a captação de financiamento, o desenvolvimento de programas inovadores e a inserção em redes internacionais de investigação. A falta de um quadro jurídico específico compromete a capacidade dessas unidades em consolidar uma identidade institucional forte e funcional.

              A transição para Centros Clínicos Universitários busca consolidar um modelo mais eficiente e inovador, onde a prática clínica se articule diretamente com o ensino e a investigação. O relatório destaca a necessidade de um regime jurídico diferenciado, que permita uma estrutura de governação robusta e adaptável, facilitando o acesso a recursos e promovendo a cooperação entre hospitais, universidades, centros de investigação e a indústria biomédica.

              A criação dos CCU exigirá uma nova estrutura de governação, que integre uma gestão estratégica eficiente e sustentável, garantindo transparência e responsabilidade na alocação de recursos. Além disso, a reorganização deverá prever modelos flexíveis de financiamento, considerando a complexidade dos serviços prestados e incentivando parcerias público-privadas.

              Em termos de impacto, espera-se que esta reforma posicione Portugal de forma mais competitiva no cenário global da medicina e das ciências da saúde, promovendo um ambiente mais favorável para o desenvolvimento de tecnologias médicas e para a formação de profissionais altamente qualificados. Além disso, a integração da assistência com a investigação e a inovação deverá permitir melhorias na qualidade dos cuidados de saúde e ganhos operacionais significativos para o SNS.A implementação da reforma deverá ser acompanhada por sistemas de monitorização contínua, com indicadores de qualidade e eficiência, assegurando que os novos Centros Clínicos Universitários cumpram sua missão de excelência no ensino, na assistência e na investigação.

              (imagem criada com ferramenta de inteligência artificial)

              Desconhecida's avatar

              Autor: Pedro Pita Barros, professor na Nova SBE

              Professor de Economia da Universidade Nova de Lisboa.

              Deixe um momento económico para discussão...