Nas duas últimas semanas, voltou à discussão pública a “dança das cadeiras” nos lugares de topo no Serviço Nacional de Saúde, nas nomeações para os conselhos de administração das Unidades Locais de Saúde (ULS). Há cerca de um ano (e uns meses) ocorreu um número substancial de mudanças, em que com a criação de 31 novas ULS diversos membros dos anteriores conselhos de administração dos hospitais não seguiram para a liderança das respetivas ULS. Agora, ainda com pouco tempo de mandato, várias têm sido as substituições.
Estas mudanças não têm dado oportunidade para que se analise o desempenho das Unidades Locais de Saúde neste primeiro ano, e se procure perceber que “afinamentos”, e onde, são precisos. Existe uma comissão de acompanhamento do desempenho das ULS. Não há ainda apresentação de resultados preliminares (os trabalhos desta comissão de acompanhamento terminarão, supostamente, em novembro de 2025), que seriam interessantes de conhecer para este primeiro ano de funcionamento das novas ULS.
Com a informação publicamente disponível, há a possibilidade de construir um primeiro “mosaico” que dê uma imagem de como correu o ano de 2024 nas novas ULS, até porque há declarações positivas sobre este primeiro ano de Xavier Barreto, Presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (administradores avaliam positivamente expansão das ULS, mas apontam melhorias).
O resultado foi codificado do seguinte modo: evolução favorável assinalada a verde, sem diferença assinalável de um ano para o outro, assinalada a laranja, e evolução desfavorável, assinalada a roxo (deixando de parte, por agora, a magnitude da evolução). Esta avaliação é também relevante para compreender, ou não, alguma parte da “dança de cadeiras” em curso (e perceber o papel do mérito e da política nas nomeações realizadas, a propósito do artigo de 07/02/2025, administração pública em Saúde: entre a meritocracia e a captura política, também de Xavier Barreto).
Os resultados são ilustrados no “mosaico”, em que cada linha corresponde a uma das novas ULS (as 8 ULS pré-existentes não estão aqui incluídas).
Deste “mosaico” resultam vários comentários.
Existe, como seria de esperar, diversidade de situações, levando a que valores médios globais ou agregados “escondam” parte importante da realidade.
A comparação de 2024 face a 2023 (nos 11 meses de informação disponível, até novembro de 2024) sugere uma melhoria geral na componente financeira (com menor taxa de crescimento dos pagamentos em atraso), o que se antecipava face ao aumento da verba para o SNS no Orçamento do Estado de 2024 – visível na predominância da cor verde na primeira coluna do mosaico.
O desempenho financeiro comparado das novas ULS face às ULS pré-existentes sugere que o “salto” da criação das ULS não se traduziu numa melhor gestão financeira (ainda?) – segunda coluna com mais unidades a laranja (sem melhor evolução que o grupo de comparação) e roxas (evolução menos positiva que a do grupo de comparação).
Obter melhorias nos indicadores de qualidade será mais lento, e não há ainda evidência disso – predominância da cor laranja (sem evolução significativa) nas colunas 2 a 6 do mosaico, e quase ausência de melhoria face ao grupo de comparação, pelas colunas 4 e 6 com poucos elementos verdes.
Na componente de acesso, aqui incluída pelo tempo de espera para cirurgia, o efeito mais comum associado com a criação da ULS foi de melhoria quando se compara apenas com o ano anterior, e de menor evolução quando se tem em conta a diferença para o grupo de comparação (as 8 ULS pré-existentes), sugerindo que a evolução positiva decorre sobretudo dos efeitos de melhor orçamento – predominância da cor verde na coluna 7 e sua quase ausência na coluna 8.
(imagens produzidas com ferramenta de IA)
Nota técnica:
A criação do quadro de análise obriga a opções metodológicas, que devem ser discutidas, pois essas opções são suscetíveis de influenciar as conclusões finais.
O principal problema técnico a resolver é como isolar os efeitos das várias mudanças ocorridas simultaneamente. Há, pelo menos, três mudanças a terem lugar: a atribuição de orçamentos por capitação às ULS, em valor mais generoso do que no passado; a criação de 31 novas ULS, integrando hospitais (centros hospitalares) e cuidados de saúde primários (em que se generalizou o chamado modelo B das Unidades de Saúde Familiar); e, a mudança das equipas dirigentes e o seu âmbito de intervenção.
A componente do orçamento (financiamento das ULS) afetou todas as unidades, as 31 novas e as 8 já existentes. A passagem a ULS não afetou, como é óbvio, as 8 ULS existentes, todas elas nessa situação há mais de uma década, e consequentemente com uma maior estabilidade de funcionamento do que é natural ter sucedido nas 31 recém-criadas ULS.
A comparação, em indicadores relevantes, das novas ULS nos primeiros 11 meses de 2024 com os primeiros 11 meses do anterior (2023), junta os resultados acumulados das várias mudanças ocorridas. É um primeiro passo de análise a ser dado.
Para isolar o efeito (médio) de reforço orçamental e de outros fatores comuns a todo o SNS, uma abordagem possível consiste em usar a evolução das 8 ULS pré-existentes como representativa de tudo o que não foi resultado da criação de uma ULS. A evolução comparada de cada nova ULS com a evolução das 8 ULS pré-existentes dá o efeito da criação da nova ULS e da sua gestão (não sendo separável o que foi a criação da ULS do que seria a qualidade da respetiva gestão).
Para ilustrar esta abordagem, e ter uma primeira visão quantitativa, utilizei informação pública sobre pagamentos em atraso (comparando as ULS atuais com os hospitais que as integram para os anos anteriores à sua criação) como indicador sumário para a gestão financeira e de eficiência; sobre mortalidade por AVC (hemorrágico e isquémico, separadamente), como indicador de qualidade, dada a sua disponibilidade; e, percentagem de inscritos em LIC – Lista de Inscritos para Cirurgia dentro do Tempo Máximo de Resposta Garantido (180 dias), como indicador de acesso.
São todos indicadores associados à atividade hospitalar. Infelizmente, a informação para os cuidados de saúde primários publicamente disponível não permite associar de forma completa a situação antes e depois da criação das novas ULS em vários casos. Se, e quando, houver esse detalhe de informação, será possível construir uma visão mais ampla dos resultados da criação das ULS (ou então limitar a análise às ULS onde o mapeamento antes/depois da criação das ULS quanto aos cuidados de saúde primários esteja disponível nos dados).
Para cada um destes quatro indicadores, foram realizados dois cálculos: a) comparação da evolução mensal antes e depois da criação da ULS (tecnicamente, é feita uma análise de regressão linear para cada ULS, medindo-se a eventual alteração de tendência mensal em 2024 face a 2023; são usados apenas dados da ULS em causa e das unidades que a constituem); b) comparação da evolução de cada ULS nova com a evolução das 8 ULS pré-existentes, entre 2024 e 2023, utilizando um modelo linear de diferença das diferenças. Foi também feita a mesma análise com mais anos retrospetivos, que não consta do “mosaico” para simplificar a análise.
Em termos formais, seja ∆A a variação de um indicador na ULS A, criada em 2024, face a 2023. Seja ∆B a variação (entre 2024 e 2023) do mesmo indicador em cada uma das 8 ULS pré-existentes. A primeira análise consiste em calcular ∆A (colunas ímpares do “mosaico”). A segunda análise olha para ∆A – ∆B (colunas pares do “mosaico”). Se houver uma alteração K comum a todas as ULS (por exemplo, K = maior orçamento em 2024), leva na primeira análise a ∆A+K, enquanto na segunda análise leva a ∆A+K – (∆B+K) = ∆A-∆B, ou seja, não afeta a medida de desempenho. Efeitos que afetem apenas ∆A, como melhor gestão da nova ULS, são detetados quer na primeira quer na segunda abordagem.
Nas últimas duas semanas ganhou destaque o “choque” entre uma empresa tecnológica na área da saúde, a “Swordhealth”, e o INEM, a propósito da possibilidade da primeira instalar um sistema de atendimento baseado num modelo de inteligência artificial desenvolvido pela empresa (que é conhecida por outro tipo de instrumentos, não tendo na sua carteira o desenvolvimento de modelos de linguagem para atendimento telefónico em situações de emergência).
A ideia de juntar novos modelos de inteligência artificial com atendimento telefónico em situações de emergência, para acelerar o processamento dos casos mais simples, é atrativa, e explorá-la é um passo natural no aproveitamento dos mais recentes desenvolvimentos tecnológicos. Esta primeira tentativa resultou, porém, em acusações mútuas das partes que deveriam levar a cabo e em conjunto o desenvolvimento da experiência.
A primeira reação pública veio de um dos fundadores (e CEO) da SwordHealth, com declarações à comunicação sociale colocação de um texto em redes sociais: “O que encontrámos é assustador”: a empresa SwordHealth ofereceu IA ao INEM, mas percebeu que era “impossível implementar a solução”.
O representante da SwordHealth queixou-se da falta de cooperação e da falta de acesso à informação necessária para “treino” do modelo. Foi duro na apreciação “é impossível conseguir alguma coisa com a camada intermédia de técnicos que estão na mesma posição há 10/20 anos sem conhecimentos básicos. Adicionalmente, há uma aversão à mudança patológica. (…) dependemos de técnicos do Estado sem conhecimento ou de empresas que parasitam o sistema”. A SwordHealth disponibilizou um exemplo do seu modelo de utilização de inteligência artificial que pode ser ainda ser ouvido (aqui, verificado a 16/02/2025).
Embora os primeiros alertas viessem da preocupação com o uso da informação, esse não parece ter sido o verdadeiro problema, pois haverá certamente o quadro legal e instrumentos necessários para resolver satisfatoriamente essas preocupações.
A nível internacional, a utilização de inteligência artificial neste contexto de atendimento telefónico e triagem encontra-se em crescimento, e existe uma primeira revisão das experiências que têm sido documentadas (aqui). As preocupações com a segurança da informação (privacidade) e com a confiança nessa segurança não são específicas de Portugal, e têm de estar cabalmente resolvidas em qualquer solução de triagem usando modelos de inteligência artificial. Os eventuais problemas de privacidade de informação têm soluções conhecidas e não serão o obstáculo ao seu uso neste contexto.
A utilização de ferramentas de inteligência artificial tem de possuir grande transparência para gerar confiança da população (que não se limita à questão da privacidade dos dados recolhidos).
Os desafios de implementação em termos de confiança, confidencialidade e formação de pessoal, bem como a falta de equipamento, não são apenas em Portugal que surgem.
Este episódio do INEM, na parte que já é publicamente conhecida, revela o choque (inevitável?) entre a velocidade da inovação e a inércia do que existe, e da necessidade de compromisso para que soluções inovadoras possam ser tentadas.
Sem ter a veleidade de fazer um julgamento sobre quem está certo e quem está errado neste “conflito”, pelo menos por agora e com o que se sabe, há alguns pontos que são relevantes considerar:
Ao tornar automáticos os processos mais simples, reduz-se a pressão sobre os trabalhadores e permite uma maior rapidez na mobilização dos recursos necessários à situação de emergência comunicada. Há, por isso, vantagens em procurar soluções que tenham esse automatismo.
Para estar na fronteira das soluções tecnológicas não é possível estar apenas dependente das soluções geradas no sector público. A capacidade de experimentar novas ideias é maior com a liberdade do sector privado. O sector público, por seu lado, precisa de ter sempre presente a importância de escrutínio sobre o uso de dinheiros públicos. E tende a “jogar pelo seguro”. É certo que estabelecer relações e parcerias com entidades privadas não pode deixar o sector público dependente (refém) da entidade privada. Esta dificuldade do sector público não é específica de Portugal. Só por curiosidade, nos Estados Unidos, país de referência para a SwordHealth, há sistemas importantes do Governo que ainda usam COBOL (ver aqui).
O principal risco do uso da inteligência artificial está na chamada “alucinação”: o modelo levar a respostas incorretas que uma decisão humana não faria, ou faria em menor grau.
Para que o uso da inteligência artificial possa ser útil em todas as suas potencialidades é necessário que haja uma cultura organizacional que se ajuste a essa utilização, nomeadamente através de treino e conhecimento das capacidades da inteligência artificial. Ou seja, o INEM também tem de se preparar internamente, levando a que os seus trabalhadores olhem para a utilização de investigação artificial como forma de aumentar a sua capacidade de resolver problemas, e não como substituição de pessoas. Provavelmente, a reação de receio de substituição por parte das pessoas que trabalham no INEM não foi tida em conta.
Por outro lado, o exemplo de funcionamento do modelo de inteligência artificial, sendo atrativo, deixa de fora o que serão os aspectos mais interessantes: em que momento e como é que o modelo decide que deve passar a um decisor humano a continuação do atendimento do caso? Quantas situações de “falsas emergências” consegue detetar e resolver? Quantas situações que “verdadeiras emergências” não são resolvidas por serem tratadas como casos menores? (ou seja, que tipos de erros surgem).
Além disso, estará o modelo da SwordHealth preparado para ultrapassar os obstáculos à triagem de crianças e grupos vulneráveis (deficientes, etc.) em situação de emergência? Aqui, o momento de passagem do atendimento automático para operador humano será provavelmente crucial, e os testes com dados reais serão cruciais para perceber como é feito.
Por outro lado, o uso de instrumentos de inteligência artificial também tem potencial para ajudar a ultrapassar barreiras linguísticas no acesso a cuidados de saúde, pelo que pode vir a facilitar o uso de mecanismos de triagem por parte de populações imigrantes, com dificuldades de comunicação em português.
Reduzir a questão à boa ou má vontade de qualquer uma das partes (INEM ou SwordHeatlh) é redutor, e atrasará o uso de soluções tecnológicas que ajudem a melhorar o serviço prestado pelo INEM à população, que é o verdeiro critério de avaliação.
Aprendeu-se com esta situação que não basta ter excelência tecnológica para que uma solução nova seja adoptada no sector público. É necessário garantir que há abertura da organização, em termos da sua cultura, para acolher e ajustar as inovações, em lugar de as rejeitar como mecanismo de defesa, até com o argumento da incerteza quanto aos resultados e situações inesperadas que possam surgir face à certeza “do que existe”. É um esforço mútuo.
Como avançar a partir daqui? (neste caso e numa perspectiva mais geral)
Em primeiro lugar, é essencial ter um quadro de governação para a inteligência artificial na saúde. Deve-se estabelecer normas reguladoras claras para o seu uso no setor da saúde e nos serviços de emergência, para este situação em particular, definindo princípios de transparência, responsabilidade e segurança de dados que assegurem a confiança do público.
Poderá ser útil a criação de uma unidade de colaboração público-privada para a inteligência artificial. Um grupo dedicado dentro do Ministério da Saúde permitiria facilitar o diálogo entre empresas tecnológicas e instituições públicas, levando à criação de protocolos estruturados para o uso de dados, respeitando os requisitos de privacidade e segurança, para fins de implementação de novas soluções. O envolvimento das entidades envolvidos diretamente no uso facilitaria o desbloquear de resistências culturais e técnicas à adopção de novas ferramentas (que podem implicar investimentos em infraestruturas e treino de profissionais).
Terceiro, o uso de experiências controladas para a triagem assistida por inteligência artificial será uma solução prudente. Dado que existem chamadas para os serviços de emergência que não são verdadeiramente urgentes, os primeiros testes devem focar-se nesses casos, permitindo uma avaliação realista do desempenho do sistema antes de uma implementação mais ampla (por exemplo, para o 112, foi há pouco tempo relatado que mais de metade das chamadas para o 112 são falsas ou não reportam emergências). É fundamental envolver auditorias externas que monitorizem métricas essenciais, como erros de classificação e capacidade de encaminhamento para um profissional humano quando necessário.
Quarto ponto, é indispensável formar os profissionais do setor público para trabalhar com inteligência artificial, para que esta utilização seja vista como uma ferramenta de apoio e não como um substituto das suas funções. A inteligência artificial auxilia mas a supervisão humana é mantida.Embora a discussão acima esteja centrada na relação entre quem traz inovação e quem tem de a usar, não se deve descurar a confiança das pessoas no sistema de apoio de emergência. Deixo por isso uma questão para quem chegou até aqui: o que pensa sobre a utilização de inteligência artificial no atendimento de emergência, como auxiliar da intervenção, e sob supervisão, humana?
Foi disponibilizado recentemente o relatório final da comissão técnica independente sobre as unidades locais de saúde (ULS) universitárias.
A principal conclusão não é inesperada: a recomendação para a “transformação” das atuais ULS de “cariz universitário” (as que têm uma ligação a uma faculdade de medicina) em Centros Clínicos Universitários (CCU).
Mais importante que a designação é saber se estas ULS têm necessidade de um modelo de governação e de um modelo de financiamento distinto.
A proposta (recomendação) feita pela Comissão dá uma resposta afirmativa, e apresenta, no documento, as bases da proposta.
O ponto de partida é a exigência de organizar de forma coordenada três grupos de atividades: i) clínica; ii) formação básica e avançada; iii) investigação e inovação.
Como foram identificados mecanismos de governação e de financiamento distintos, surge a proposta do novo modelo organizativo dos CCU (Centros Clinicos Universitários).
Esta proposta, tendo do meu ponto de vista uma apreciação positiva, merece alguns comentários, sobretudo ligados a detalhes operacionais.
Por ordem cronológica de apresentação no documento:
A tutela partilhada entre Saúde e Educação (suponho que será Ministério do Ensino Superior e Ciência, se vier no futuro a ser feita a separação que já existiu) faz sentido, naturalmente. Adicionalmente ao que é dito, há vantagem em definir uma unidade operacional ou comissão conjunta que possa dar uma continuidade de acompanhamento dentro dos Ministérios relevantes.
Quando se refere a colaboração institucional com entidades externas, a operacionalização que venha a ocorrer deverá acomodar de forma separada, e até com instrumentos diferentes, dois tipos de colaboração: a) a difusão interna, em Portugal, de novos conhecimentos científicos e de prática; b) a participação na fronteira de geração de conhecimento internacional, com destaque para as colaborações a nivel da União Europeia.
São duas atividades de natureza muito diferente, ambas úteis e necessárias ao desenvolvimento dos CCU, e irão precisar de quadros diferentes para os vinculos institucionais colaborativos que são mencionados.
Sobre a existência de um Conselho Nacional dos Centros Clinicos Universitários, não ficou clara a sua necessidade. Em concreto, o que será discutido e acordado neste conselho que não seja ou não possa ser discutido em algum outro conselho ou organismo que já exista?
A sugestão de uma governação com”duas camadas” surge como adequada, bem como a sugestão de ter cruzamento de vogais executivos entre o braço de atividade clinica (ULS) e o braço de atividade universitária (a faculdade de medicina), garantindo a representação permanente de cada um dos lados no orgão executivo do outro.
A reciprocidade invocada é importante para a coordenação. Será provavelmente útil reforçar essa ligação tendo elementos técnicos de apoio que sejam comuns aos dois orgãos executivos para assegurar que há permanente atualização, de forma automática, sobre as decisões tomadas em cada um dos braços do CCU.
É explicitado que o “vogal executivo indicado pela Escola ou Faculdade de Medicina assumirá o pelouro das atividades pedagógicas, cientificas e de inovação no âmbito do Centro Clínico Universitário”. Tal garante ao braco universitário a condução desse aspecto. Embora não fosse um detalhe que me ocorresse, é uma boa solução para o objectivo pretendido.
Nas recomendações referentes aos recursos humanos, gostaria de ter visto mais detalhe no que se refere à circulação de profissionais entre a área clínica e a área académica. Em particular, creio ser relevante que essas regras também permitam passar de uma área de um CCU para outra área de outro CCU. A mobilidade profissional deverá ser favorecida pelo modelo adoptado. Um outro aspecto relacionado é como serão interligadas e participantes as três diferentes culturas envolvidas, hospitalar, cuidados de saúde primários e académica.
A consideração de provas públicas para progressão profissional no âmbito dos CCU fornece um meio de escrutínio científico e profissional importante.
Gostaria de ter visto uma lógica mais desenvolvida para o ciclo de vida profissional. É referido que são permitidos “ajustes conforme as necessidades institucionais e os interesses e competências dos profissionais”.
Seria útil conhecer o que deve ser entendido como o percurso típico de equilibrio entre as atividades clínicas e as atividades académicas, ao longo da vida profissional. Pressuponho que não seja o mesmo tipo de equilibrio ao longo de toda a carreira profissional no CCU.
É dito que os CCU “deverão contribuir para a equidade contratual”. Esta parte parece-me complicada de assegurar se não houver grande clareza sobre o que se pretende em cada uma das carreiras, clínica e docente. É normal que haja auto-seleção dos profissionais de acordo com as suas capacidades e preferências.
A pressão salarial numa e noutra carreira é natural que dependa de quantos profissionais queiram estar numa carreira face aos lugares nela disponíveis (seja pela negociação direta de condiçoes salariais, seja pela disponibilidade de lugares a serem preenchidos, seja qualquer outro factor de atratividade da carreira, o que fará parte do “salário implícito”).
É importante a consideração de tempo protegido enquanto “oportunidade” colocada à disposição e não como “direito”.
É prevista (recomendada) flexibilidade no tipo de envolvimento dos profissionais, permitindo que cada CCU possa desenvolver uma filosofia interna própria, decorrente das suas tradições e das suas ambições no espaço nacional e no espaço europeu. Em particular, esta flexibilidade pode permitir situações como períodos sabáticos para atualização de conhecimentos ou para maior inserção na prática clinica (consoante o ponto de partida do profissional de saúde) e para o acolhimento temporário de pessoas de outras ULS (CCU ou não).
No capítulo do financiamento, há também pontos a destacar.
A recomendação de os CCU promoverem “a sua própria sustentabilidade, garantindo um nivel de financiamento alinhado às necessidades reais”. Sendo salutar como princípio é difícil perceber como pode ser concretizado.
As actividades principais, clinica e académica, têm os preços e os volumes determinados por entidades externas ao CCU: não pode aumentar o preço dos serviços que presta, não pode estabelecer livremente propinas no braço académico, não pode rejeitar tratar doentes em caso de necessidade, não escolhe o número de alunos.
Os rendimentos de propriedade intelectual que existam, ou venham a existir, não serão, suspeito, a principal fonte de receitas do CCU. De certo modo, este aspecto é reconhecido quando se discute o aprofundamento do modelo de financiamento por capitação afastada, elemento que vejo como essencial neste contexto dos CCU.
A discussão será essencialmente técnica. Para a definição da capitação ajustada é necessário definir qual a população servida para cada conjunto de serviços organizados por diferenciação e complexidade de acordo com a rede de referenciação.
Sendo as unidades clínicas dos CCU um misto de cuidados de proximidade (a componente de cuidados de saúde primários da ULS parte do CCU) e de cuidados muito diferenciados, incluindo referenciação de doentes de elevada complexidade de outras us, o número de pessoas abrangido (o “capita” ) será diferente.
E aqui há duas soluções: ou a capitação ajustada é “fatiada” por tipo de serviços para acomodar redes de referenciação ou tem de existir um sistema de preços internos dentro do SNS. Um exemplo simples ajuda a ilustrar a minha preocupação. Tomemos duas zonas, A e B, que têm populações nA e nB.
Estas populações têm necessidade de dois grandes grupos de cuidados de saúde, 1 e 2, em que o “custo per capita” é c1 > c2 (ou seja, o tipo 1 tem cuidados mais diferenciados e de custo mais elevado).
A zona A é servida por um CCU que tem capacidade para tratar ambos os tipos de necessidade. A zona B é servida por uma ULS que tem capacidade de satisfazer as necessidades de tipo 2 e referência as necessidades de tipo 1 para o CCU.
Assim, o CCU terá despesas globais (nA + nB) c1 + nA c2, enquanto a ULS terá despesas c2 nB.
O total de despesas per capita na zona A é (c1 + c2), igual ao total da despesa per capita na zona B (a despesa total depende da população de cada zona).
A versão de financiamento por capitação ajustada tomando por base a população de cada região significa que o CCU deverá receber, para ter “financiamento equilibrado”, per capita (c1 (nA +nB) + c2 nA) /nA = (c1+c2) + c1 nB/nA.
Na versão de capitação “fatiada” recebe c1 per capital para uma população abrangida pelos serviços 1 que disponibiliza dada por (nA +nB) e recebe c2 per capita pelos serviços 2 que disponibiliza à população nA.
Matematicamente, o volume global de receitas é o mesmo, apenas a forma de as apresentar difere.
Numa segunda opção do modelo de financiamento, cada entidade recebe por capitação a despesa esperada da sua população da área de abrangência e paga pelos serviços que usar, para a sua população de abrangência, de outra unidade.
Ou seja, o CCU recebe (c1+c2) nA, sendo (c1+c2) o valor da capitação enquanto a ULS (na zona B) recebe na (c1+c2) nB. E quando a população da zona B recorre ao CCU para os serviços de saúde de tipo 1 tem de pagar um “preço interno ao SNS” de p = c1 dando receita total c1nA como transferência da ULS para o CCU.
Em termos matemáticos as receitas globais de cada entidade são iguais às do modelo de financiamento por capitação ajustada (” fatiada”). Contudo, há uma diferença importante: se a ULS puder direcionar os seus doentes com necessidades tipo 1 para diferentes CCU em lugar de ter uma referenciação obrigatória para um único CCU.
O que a recomendação da CTI me parece sugerir é a adoção da capitação ajustada como base, e ter “preços internos ao SNS” caso haja fluxo de doentes, que deveria contudo ser residual porque esses pagamentos seriam aplicados apenas a transferências para fora da referenciação definida.
Se a capitação ajustada tiver como base as despesas de base histórica de cada unidade face à população da sua área de abrangência, então há implicitamente uma aproximação ao modelo de capitação ajustada (“fatiada”).
A sugestão de um fundo centralizado de compensação é importante para compensar desequilíbrios acentuados entre o cu nos custos de tratar doentes de muita elevada complexidade (e custo). As regras de definição dos fluxos (contribuições e recebimentos de cada CCU) deverão ser estabelecidas de forma a preservar incentivos para a procura a eficiência de funcionamento e para evitar a seleção de casos (ou seja, evitar a tentação de afastar os doentes mais complexos, ainda que de forma implícita)
A preocupação com o financiamento específico das atividades de “Ensino, Investigação e de Inovação” é adequada, embora haja sempre alguma flexibilidade na gestão de verbas dentro do CCU.
É provável que seja de completar os requisitos de transparência na utilização de recursos em atividades académicas e em atividades assistenciais com algum mecanismo de auditoria (até eventualmente aleatório).
Um aspecto que não resulta claro sobre a diversidade de fontes de financiamento é se todas elas deverão estar dentro do perímetro orçamental público, ou não. Ter financiamento canalizado por entidades ligadas ao CCU mas que não estão dentro do perímetro orçamental público é algo que será aceite? Tem a vantagem de maior flexibilidade de gestão, tem a desvantagem de um menor escrutínio sobre o uso dessas verbas.
É recomendado, e bem, que se tenha uma visão plurianual. Aqui, creio que até se justifica um maior detalhe. Deverá ser clara uma visão executiva de orçamento e sua gestão a 3 ou a 5 anos, e uma visão estratégica de 10 anos. A primeira, visão de gestão, deverá atualizada anualmente para o horizonte dos três anos seguintes, a segunda atualizada a cada três anos para os dez anos seguintes (e com uma intervenção importante da primeira “camada” de governação e não apenas da comissão executa, ou seja, dar um papel claro ao Conselho de Administração não executivo).
Na componente de monitorização, adiciono apenas que se deverá automatizar o mais possivel a recolha de informação de rotina para esse fim e a criação de relatórios. A informação é recolhida diretamente tratada por quem monitoriza em lugar dos CCU terem de elaborar e aprovar internamente relatórios antes de serem enviados. Poupa-se tempo e tentações de “embelezar”a informação prestada.
Finalmente, embora a CTI tenha uma preferência por manter os atuais Centros Académicos Clínicos, creio que seria mais simples os atuais Centros Académicos Clínicos desaparecerem enquanto tal na sua formulação atual e ser desenvolvido, se for sentida a sua falta, um novo formato de colaboração envolvendo os CCU.
É usual em Portugal ter-se resistência a fazer desaparecer organismos. Neste caso, a necessidade de evolução justifica extinguir e criar de novo se for necessário e ajustado ao novo contexto, mais do que adaptar e “torcer” o que foi pensado fora da existência de CCU, para ter maior capacidade de evitar duplicações geradoras de confusão. É importante usar o que se aprendeu com a criação e funcionamento dos Centros Académicos Clínicos. Não há que ficar presos à sua existência.
Globalmente, a CTI produziu uma recomendação clara, alinhada com o espirito que presidiu à sua criação. A recomendação é baseada numa justificação apresentada em detalhe e com linhas orientadoras explicitadas. Podendo haver ajustes decorrentes de alguma discussão pública que se gere entretanto, está estabelecido o caminho para uma decisão política fundamentada.
Por curiosidade, segue-se um resumo do documento da CTI-ULS, obtido por instrumento de inteligência artificial (sem cortes ou correções face ao que saiu). Como nota, depois de ler o resumo automático, considero haver vantagem em que se leia o documento original na integra. O relatório inclui também depoimentos de várias pessoas, individualmente ou em representação de entidades, que foram ouvidas no processo. Se só tiverem possibilidade de ler uma, sugiro a de Alexandre Lourenço.
Resumo do Relatório Final da Comissão Técnica Independente sobre as ULS Universitárias (obtido por aplicação de ferramenta de inteligência artificial)
O relatório analisa a transformação das Unidades Locais de Saúde (ULS) universitárias em Centros Clínicos Universitários (CCU), destacando a necessidade de uma reformulação estrutural para alinhar melhor a prestação de cuidados de saúde com o ensino e a investigação. Esta mudança tem como objetivo modernizar o Serviço Nacional de Saúde (SNS), aproximando-o de modelos internacionais que promovem a integração entre assistência clínica, formação médica e inovação científica.
A atual estrutura estatutária das ULS universitárias não reflete adequadamente a complexidade da sua missão, limitando a captação de financiamento, o desenvolvimento de programas inovadores e a inserção em redes internacionais de investigação. A falta de um quadro jurídico específico compromete a capacidade dessas unidades em consolidar uma identidade institucional forte e funcional.
A transição para Centros Clínicos Universitários busca consolidar um modelo mais eficiente e inovador, onde a prática clínica se articule diretamente com o ensino e a investigação. O relatório destaca a necessidade de um regime jurídico diferenciado, que permita uma estrutura de governação robusta e adaptável, facilitando o acesso a recursos e promovendo a cooperação entre hospitais, universidades, centros de investigação e a indústria biomédica.
A criação dos CCU exigirá uma nova estrutura de governação, que integre uma gestão estratégica eficiente e sustentável, garantindo transparência e responsabilidade na alocação de recursos. Além disso, a reorganização deverá prever modelos flexíveis de financiamento, considerando a complexidade dos serviços prestados e incentivando parcerias público-privadas.
Em termos de impacto, espera-se que esta reforma posicione Portugal de forma mais competitiva no cenário global da medicina e das ciências da saúde, promovendo um ambiente mais favorável para o desenvolvimento de tecnologias médicas e para a formação de profissionais altamente qualificados. Além disso, a integração da assistência com a investigação e a inovação deverá permitir melhorias na qualidade dos cuidados de saúde e ganhos operacionais significativos para o SNS.A implementação da reforma deverá ser acompanhada por sistemas de monitorização contínua, com indicadores de qualidade e eficiência, assegurando que os novos Centros Clínicos Universitários cumpram sua missão de excelência no ensino, na assistência e na investigação.
(imagem criada com ferramenta de inteligência artificial)
Há assim mais uma mudança de um conselho de administração de uma ULS, o que vai levar a um acentuar da discussão em torno das substituições que têm ocorrido no sector público da saúde.
A mudança de conselhos de administração de hospitais, Unidades Locais de Saúde (ULS) na atual configuração do Serviço Nacional de Saúde (SNS), não é uma novidade deste governo. Os dados, recolhidos há cerca de 5 anos, sobre nomeações de conselhos de administração de hospitais do SNS, por Alexandre Lourenço, e disponíveis na sua dissertação de doutoramento, terminam em 2020 e referem-se à década 2010-2020, mas suspeito que não se tenham alterado muito: em 2016 houve 17 nomeações, em 2017 atingiriam o valor de 21 novas nomeações de administrações, em 2018 foram 11, em 2019 foram 16,e em 2020 foram 15 nomeações. Assim, as 11 novas administrações nomeadas em 2024 pelo novo Governo (acreditando no que tem sido uma contagem feita na comunicação social) não são um valor fora do habitual. Porém, mais importante do que saber se o número de mudanças é uma mudança radical face ao passado (e quantitativamente, não se distingue) é saber se o atual momento propícia. ou é adequado a, fazer essas mudanças.
A substituição de uma administração após pouco tempo torna mais vulnerável essa decisão à acusação de ser por motivos partidários. Essa acusação em si mesma não é nova. Numa busca rápida pelo passado, em 2011 o PS acusava o PSD de fazer nomeações de natureza política para os conselhos de administração dos hospitais, em 2007 era o Bloco de Esquerda que acusava o PS, em 2023 o PSD acusava o PS, em 2018 em entrevista Correia de Campos, antigo ministro da Saúde por duas vezes, indicava que, talvez, cerca de 1/3 dos gestores hospitalares eram escolhidos politicamente (entrevista a 23/09/2018).
Há uma característica que torna o atual momento diferente. A criação das novas ULS no início de 2024 deu lugar a nomeações das respetivas administrações nessa altura (o que deve ter correspondido a várias centenas de pessoas nomeadas), estando algumas delas a ser agora substituídas após pouco tempo em funções, e por um governo diferente do existente em finais de 2023.
Se houve, com a criação das 31 novas ULS, muitas mudanças de equipas dirigentes, é de esperar que um ano de funcionamento não seja suficiente para que tenham conseguido estabilizar o funcionamento regular dessas novas organizações. A substituição de um conselho de administração tendo por justificação insuficiente desempenho tem por isso uma exigência grande: como distinguir o que resulta da capacidade de gestão do que resulta da transformação imposta com a constituição da ULS? Naturalmente, nas mudanças que ocorram nas 8 ULS que existiam, torna-se mais simples avaliar se é o desempenho da gestão o motivo da mudança.
Adiciona-se a este contexto a visão, expressa por um deputado PSD, de sintonia “com a tutela”, o que naturalmente abre a possibilidade de nomeações por motivos políticos, e implicitamente, a posição de dever ser quem for titular da pasta do Ministério da Saúde a fazer essas nomeações de forma direta.
Há, a meu ver, dois erros sucessivos nesta posição. Primeiro, os cargos de gestão das ULS são inerentemente técnicos. O que se pretende é capacidade de gestão das unidades, e não capacidade política de falar “com a tutela”. A gestão das ULS é, naturalmente, enquadrada pelas políticas gerais para a área da saúde, sendo estas definidas pelo Ministério da Saúde, e os gestores devem encontrar, na sua atividade específica, a forma de seguir essas políticas gerais. Não os torna em agentes políticos (se fossem atores políticos, então talvez devessem ser eleitos pelas populações das respetivas ULS?). O segundo erro que vejo é considerar que deve ser quem estiver à frente do Ministério da Saúde a fazer essas nomeações quando se tem uma Direção-Executiva do Serviço Nacional de Saúde (DE-SNS). Um conselho de administração sente-se responsabilizado perante quem o nomeia. Assim, sempre que uma equipa dirigente de um ULS discordar de alguma decisão da DE-SNS irá ter a tentação, e possivelmente a prática, de se ir “queixar” e procurar reverter essa decisão junto de quem a nomeou. Subverte-se inevitavelmente a capacidade da DE-SNS ser executiva. Vai-se repetir com as ULS e a DE-SNS o que anteriormente sucedia com as Administrações Regionais de Saúde e os grandes hospitais de cada região, e coloca-se novamente o topo do Ministério da Saúde a tratar da micro gestão das ULS?
Dentro deste contexto geral, colocou-se nos últimos dias a demissão, e consequente substituição, do conselho de administração da ULS Amadora-Sintra, que tem dentro de si o Hospital Fernando Fonseca. A discussão que se tem gerado à sua volta é um exemplo do que facilmente pode suceder de modo mais sistemático nos próximos tempos.
Teria sido certamente melhor para a população servida pela ULS que não estivesse neste momento a ocorrer uma mudança da equipa de gestão. Tanto mais que a ULS de Amadora-Sintra tem o hospital subdimensionado para a população que serve na sua zona de abrangência, sendo uma população de considerável diversidade e complexidade nas questões de saúde, e o novo hospital de Sintra, que deverá vir trazer algum alívio da pressão existente, já se encontra construído, mas ainda não está em funcionamento.
A adicionar à pressão assistencial, encontra-se a tensão interna no hospital, que obviamente em nada ajuda a conseguir dar uma resposta adequada à população. Não é para mim claro que a saída do conselho de administração do hospital tenha qualquer efeito automático na resolução das tensões internas (pelo menos, as que têm sido relatadas na comunicação social).
Os problemas de gestão interna, e de recrutamento para colmatar saídas simultâneas de médicos, deveriam ter sido antecipados e se necessário deveria ter sido procurada ajuda em soluções, ainda que fossem temporárias e de transição, no contexto da rede do SNS na zona de Lisboa.
É uma situação clara onde uma intervenção da DE-SNS poderia ajudar a gestão de uma ULS a encontrar soluções e transições envolvendo outras ULS próximas. Aqui, antes de um envolvimento direto da Ministra da Saúde, deveria ter surgido uma atuação da DE-SNS. O provável é a entrada em funções de uma nova equipa de gestão atrasar a resolução de alguns dos problemas que estiveram na origem da saída do anterior conselho de administração, dado que terão de “aprender” o que se passa.
Focando um pouco mais no que tem sido apontado como motivo imediato do agravamento rápido da capacidade de resposta nas urgências (o ponto mais visível de efeitos sobre a população): a reintegração de dois médicos, que levou à demissão e saída de uma dezena de médicos (conhecida desde novembro de 2024). Nem a reintegração desses dois médicos nem a saída da outra dezena surgiu de surpresa nos últimos quinze dias.
Cabia à gestão do hospital procurar uma solução para evitar uma rotura da capacidade assistencial (em novembro ativou um plano de contingência, e nas escolhas para formação o hospital apresenta-se como tendo uma boa capacidade de atração e tem atraído números substanciais de internos). Aparentemente, os esforços desenvolvidos pela equipa de gestão não tiveram os resultados desejados. E é aqui que se deve colocar a pergunta de qual a etapa seguinte. Nos últimos dias tem-se colocado a atenção na relação entre o conselho de administração da ULS e a Ministra da Saúde.
Pergunto-me se é a este nível que a etapa seguinte da procura de soluções deve ser colocada.
Dentro da área de Lisboa não haveria possibilidade de ter soluções temporárias de colaboração de outros profissionais de saúde, sob a forma de cooperação institucional entre ULS ou de forma individual? Não houve a possibilidade de reorganização de trabalho dentro da ULS que conseguisse acomodar a reintegração dos dois médicos sem gerar saídas? Não haveria aqui espaço para um DE-SNS procurar ajudar, seja na parte de profissionais de saúde seja até em formas de aliviar a pressão assistencial sobre o hospital? Desconheço os detalhes concretos, mas o que se vai conhecendo sugere uma questão de gestão, e não uma questão de política geral a ser decidida pelo Ministério da Saúde (a atual equipa de gestão sai com o argumento de não querer dificultar a procura pela tutela de soluções).
Como a “solução” vai passar pela nomeação de uma nova equipa de gestão, é um bom momento para dar um sinal institucional diferente do que realizar uma nomeação por “alinhamento político” (que não será certamente assumido como tal).
A minha preferência é que a nomeação fosse feita pelo Diretor-Executivo do SNS, para ser claro perante quem o conselho de administração responde, e colocando essa responsabilidade no patamar técnico e não no patamar de “alinhamento político”. Como muito provavelmente não vai suceder dessa forma dadas as decisões recentes sobre as competências da DE-SNS, esta nomeação, e todas as que se venham a realizar com nomeação direta por parte do Governo, deverá estar acompanhada de uma carta de compromisso, onde constem os grandes objetivos de gestão que são assumidos pelo conselho de administração que entra, e que constituirão o ponto de referência para aferir o desempenho da equipa de gestão que entra em funções.
A DE-SNS deverá ser parte integrante da criação dessa carta de compromisso, publicamente conhecida, e nela deverá ficar claro a responsabilidade técnica dos compromissos assumidos perante a DE-SNS. A habitual publicação dos percursos profissionais das pessoas nomeadas e o terem sido propostas aprovadas pela CReSAP não é suficiente.
O atual momento exige um maior grau de compromisso dos decisores políticos com o que é o trabalho técnico das nomeações que fazem (e é um aspecto que deveria estar presente em todo o sector público, não é particular da área da saúde).
Será também adequado que futuras saídas de conselhos de administração tenham uma justificação clara e detalhada, mesmo que fique reservada para a relação entre quem sai e quem decidiu essa saída (que, como referi acima, preferia que fosse a DE-SNS e com base em motivos estritamente técnicos, que não incluem “alinhamento com a tutela”). A clareza e lealdade mútuas nessas decisões de saída são também um elemento importante para atrair quem queira exercer estas funções com uma visão eminentemente técnica. E do ponto de vista do cidadão de qualquer ULS, será provavelmente preferível que o conselho de administração esteja mais preocupado com a sua saúde do que com satisfazer as vontades “da tutela”, isto é, ter mais preocupação com a saúde da população do que em agradar a quem estiver à frente do Ministério da Saúde.
Da semana passada, o sector da saúde continua a ser noticia, pela componente política e de políticas de saúde, mas também por evoluções que se vão conhecendo.
Destaco três noticias dos últimos sete dias que passaram relativamente despercebidas no meio do “ruído” geral do sector.
A primeira, a expansão segura da hospitalização domiciliária, em que os doentes passam a fase final do episódio de internamento hospitalar em sua casa. Do ponto de vista do abente é reconhecidamente melhor fazer a recuperação final em casa, com acompanhamento dos serviços hospitalares, pois é mais cómodo e até evita o risco de contrair infeções hospitalares. Do ponto de vista do hospital, é uma forma de ter capacidade de tratamento por internamento flexível, dado que o número de doentes que consegue ter em internamento aumenta ou diminui consoantes as necessidades e as oportunidades para a hospitalização domiciliária. Exige capacidade de organização e gestão e financeiramente é facilmente compensador para o orçamento hospitalar, e logo, para o orçamento da Unidade Local de Saúde (ULS) em que insere. É um bom exemplo de evolução dos serviços prestados pelo Serviço Nacional de Saúde, e que faz o seu caminho de forma sólida e longe dos holofotes da exposição politica (talvez também por isso tem sido um caminho seguro?).
A segunda “noticia”, que não surge enquanto tal nos meios de comunicação social, é a concretização do esperado valor muito baixo dos pagamentos em atraso das entidades do Serviço Nacional de Saúde, em Dezembro de 2024, segundo os valores divulgados pela Direção Geral do orçamento: cerca de 13 Milhões de euros, ou seja essencialmente próximos de zero. Cabe agora à gestão das ULS garantir que em 2025 o problema dos pagamentos em atraso não se volta a repetir, cabe à Direção-Executiva do Serviço Nacional de Saúde (DE-SNS) acompanhar e fomentar as medidas de gestão que evitem o crescer dos pagamentos em atraso, cabe à Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) garantir que a DE-SNS se preocupa com o assunto e acompanha as vis nos seus esforços de gestão. Cabe ao Ministério da Saúde (Secretaria de Estado da Gestão da Saúde) assegurar e monitorizar que ACSS e DE-SNS cumprem as suas funções junto da gestão das unidades locais de saúde neste aspeto concreto (e infelizmente recorrente) da gestão do Serviço Nacional de Saúde. Daqui a um mês se verá qual o sinal transmitido pela evolução dos pagamentos em atraso.
Terceira “noticia” , a publicação pela OCDE de um trabalho de análise sobre a escolha de profissões de saúde por parte das novas gerações. São focadas as intenções de carreira dos jovens com 15 anos, o que permita antecipar o que se poderá passar daqui a uma década (e atuar entretanto, se for considerado que tal é necessário e passível de ter algum resultado). Face a 2018, há, no conjunto da OCDE, um menor interesse nas profissões de saúde (e um crescimento do interesse em profissões ligadas às tecnologias de informação e comunicado). Em Portugal, a situação é ligeiramente melhor em 2022 do que em 2018, nas intenções de carreira na área da saúde. O que poderá ser uma pressão forte é a procura externa de profissionais de saúde. Face a um menor interesse nestas profissões em paises como os Estados Unidos, o Canadá, a Bélgica, a Irlanda, a Franç.a, a Suécia e a Dinamarca, conjugada com o crescimento das necessidades, a mobilidade internacional de profissionais de saúde será provavelmente impulsionada pela procura de profissionais de saúde por parte destes países no mercado internacional (e Portugal tem ads tradicionalmente um pais de origem de profissi mais de saúde para estes fluxos de mobilidade internacional) É importante saber se o decréscimo de “treme em paises europeus se deve à COVID-19 e ao esforço que foi visivelmente feito pelos profissionais nesse periodo, e se o desinteresse é conjuntural ou estrutural (permanente). A situação reportada é similar para medicina e enfermagem. Em Portugal, é desejável saber mais, e de forma antecipada, sobre as intenções de carreira, na dupla componente de área de formação e potencial mobilidade internacional, para as profissões de saúde. O trabalho da OCDE seria mais informativo se contivesse informação e análise detalhada sobre a mobilidade internacional de profissionais de saúde e o que determina essa mesma mobilidade (que elementos de “procura”e de”oferta” têm sido relevantes e qual a sua evolução previsível na próxima década).