Tive a oportunidade de estar no painel “A saúde mental dos portugueses numa Europa digital”, na conferência de apresentação do Stada Health Report de 2024, onde a conversa andou pelos resultados do inquérito da Stada na parte reference à saúde mental. Como o tempo de conversa em painel é inevitavelmente curto, face a alguns resultados do inquérito decidi passar a escrito as impressões resultantes da preparação da sessão.
1 O Stada Health Report 2024 e saúde mental
O Stada Health Report 2024 tem uma especial atenção, na parte referente a Portugal, às questões de saúde mental e o bem-estar dos portugueses. O documento apresentado introduz números e pontos de interesse diversos.
Os números centrais, no que a esta parte diz respeito, são claros. Enquanto 63% dos portugueses classificam a sua saúde mental como boa ou muito boa, a solidão continua a ser um problema significativo, afetando 49% dos portugueses (ainda assim menos que os 52% dos europeus inquiridos no seu conjunto). As gerações mais jovens, apesar de estarem mais ligadas digitalmente, relatam níveis mais elevados de solidão, muitas vezes ligados ao tempo excessivo gasto nas redes sociais digitais. O relatório apela à conciliação entre a vida profissional e a vida privada, que contribui para a solidão e os desafios de saúde mental, particularmente entre os mais jovens.
Estes resultados são plausíveis pela metodologia usada, pelo que contribuem para o nosso conhecimento sobre a saúde mental e o bem-estar, que passaram a receber muito mais atenção depois do choque da Covid-19. A situação já existia, em grande medida, e simplesmente não recebia grande atenção. O relatório Stada 2024 gera mais perguntas, e sugere que retomemos discussões recentes, na procura de soluções para problemas que surgem como quantitativamente relevantes.
Um paradoxo nos números?
Serão os portugueses uns “solitários felizes”, como quase se pode inferir do titulo “A geração mais nova aparenta ser a mais feliz, mas com um maior sentimento de solidão”, ou há algo mais para explorar? Para saber mais, será interessante olhar para as respostas, e ver se os mais felizes indicam mais ou menos solidão.
A mesma ideia de cruzamento de respostas dará certamente indicações importantes quando se confrontar os motivos de solidão com a idade. A minha conjetura é a perda recente de conjuge, familiar ou amigo ser importante na geração mais velha, e o trabalho a partir de casa ser relevante sobre para as pessoas em idade activa e as mais jovens dentro destas. Também é fácil prever que as soluções para a solidão variam consoante o motivo subjacente.
Por que discutir a saúde mental e o bem-estar?
Portugal, à semelhança de muitos outros países europeus, está a assistir a uma mudança na forma como a saúde mental é percecionada e gerida. De acordo com o STADA Health Report para Portugal, 63% dos inquiridos portugueses consideram a sua saúde mental boa ou muito boa, um valor que reflete uma sensação moderada de bem-estar mental na população e 62% referiu sentir-se feliz. Apesar dos valores serem muito parecidos, bem-estar e saúde mental são conceitos diferentes, e traduzem realidads distintas ainda que relacionadas.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) define saúde mental como um estado de bem-estar que permite às pessoas lidar com o stress, trabalhar produtivamente e contribuir para a comunidade. Não é a simples ausência de doença.
O bem-estar mental refere-se a um estado positivo de saúde emocional, psicológica e social, caracterizado por um sentimento de felicidade, resiliência, equilibrio emocional e capacidade de lidar eficazmente com os desafios da vida. Engloba emoções positivas, um senso de propósito e a capacidade de se envolver em relacionamentos e atividades gratificantes.
A preocupação com a saúde mental acaba por frequentemente centrar-se no diagnóstico e tratamento de doenças ou distúrbios mentais. Tende a concentrar-se na doença mental, visando prevenir, gerir ou tratar. O bem-estar mental é um conceito mais amplo e positivo. Inclui medidas preventivas, fomentando a resiliência e promovendo o desenvolvimento emocional e psicológico. Enquanto a saúde mental se concentra no tratamento, o bem-estar mental envolve a criação de um estado contínuo de felicidade e satisfação com a vida. O relatório STADA acaba por focar em aspectos de bem-estar mental, como aspectos de nutrição e exercício fisico, e menos na saúde mental/doença mental.
Dado o crescente foco no equilíbrio entre vida profissional e pessoal e na prevenção do burnout, a promoção do bem-estar mental alinha-se bem com estes objetivos, promovendo uma força de trabalho mais saudável e produtiva.
Em resumo, o STADA Health Report oferece uma imagem do bem-estar na população a necessitar de clarificação, com maior exploração dos dados recolhidos, onde muitos se envolvem em comportamentos saudáveis e relatam felicidade, mas questões como solidão e burnout prejudicam o bem-estar mental mais amplo. Isto sugere que, embora a população esteja consciente e valorize a saúde pessoal, existem desafios subjacentes que precisam de ser abordados para melhorar o bem-estar geral.
A falta de motivação e de tempo foram as principais razões apontadas pelos portugueses para negligenciarem o seu bem-estar. Ainda assim, há 89% dos portugueses inquiridos que revelam dedicar-se a exercício físico e a manter uma alimentação saudável para cuidar da saúde.
Revela-se uma vez mais a necessidade de encontrar um melhor equilíbrio entre a vida profissional e pessoal. A pressão no trabalho foi citada por muitos como um fator que contribui para a solidão.
A solidão inesperada
Um dos números chave do relatório indica que, 63% dos inquiridos portugueses classificaram a sua saúde mental como boa ou muito boa, mas a solidão continua a ser um problema significativo. Portugal, tal como o resto da Europa, tem um problema com a solidão, com as gerações mais jovens a sentirem-se mais solitárias, apesar dos níveis de felicidade mais elevados. Como referido antes, estes dois elementos poderão refletir uma polarização grande no nível de bem-estar, com causas diferentes. Ainda assim, os valores elevados sugerem uma necessidade de confirmação no futuro.
Redes sociais: o mundo digital não substitui o mundo fisico
A era digital, caracterizada pela presença online constante, redefiniu as interações sociais. Ao mesmo tempo que permite a conectividade, também pode alienar indivíduos, particularmente as gerações mais jovens, que relatam níveis mais elevados de solidão, apesar de serem mais ativos digitalmente. Em Portugal, a geração mais jovem parece ser particularmente vulnerável, com muitos a sentirem que o tempo excessivo passado nas redes sociais contribui para a sua solidão. Este resultado em si parece a confirmação de impressões que se vão tendo, e precisamente por isso será interessante que o inquérito explore um pouco mais em detalhe, e até em comparação com outros países. Será resultado de um pequeno número de respostas mais fortes, ou uma variação média global?
O local de trabalho e o papel das organizações
A saúde mental no local de trabalho deve ser abordada como uma questão organizacional, e não apenas individual, e na perspectiva mais ampla de bem-estar. Ou seja, há a necessidade de as diversas entidades que têm trabalhadores, incluindo naturalmente as empresas, abordarem proativamente os riscos no ambiente de trabalho para o bem-estar e para a saúde mental.
O relatório EXPH[1], de 2021, de salienta que as condições do local de trabalho têm um impacto direto na saúde mental dos trabalhadores, e a saúde mental deve ser integrada nas políticas de saúde e segurança no trabalho. Embora o relatório foque nos trabalhadores de unidades de saúde, os princípios apresentados são, na verdade, mais gerais. Ao colocar-se a saúde mental e o bem-estar como uma questão organizacional, a opinião expressa pelo painel EXPH implica mudanças significativas na forma de dar resposta aos desafios da saúde e bem-estar mentais, incluindo um maior envolvimento da liderança das organizações e das políticas no local de trabalho para a promoção um ambiente propício ao bem-estar mental.
Esta mudança de perspectiva exige que as organizações avaliem e melhorem fatores como a carga de trabalho imposta, cultura do local de trabalho, e sistemas de apoio aos trabalhadores. Ao criar ambientes que apoiam o bem-estar mental, as organizações, por promoverem uma força de trabalho mais saudável e produtiva, acabam por recolher benefícios económicos significativos, como menor rotação de trabalhadores, menos baixas médicas e melhor desempenho.
Várias propostas do Relatório EXPH podem ser aplicadas no contexto do Relatório STADA Saúde, particularmente no que diz respeito à saúde mental e ao bem-estar mental no local de trabalho e à conciliação entre a vida profissional e a vida familiar.
O relatório STADA alinha-se com as preocupações e propostas surgidas em diversos relatórios da Comissão Europeia, nomeadamente no esforço para se conseguirem ambientes de trabalho amigos do bem-estar mental. No ambiente de trabalho, as organizações podem definir e aplicar políticas para reduzir as elevadas cargas de trabalho e permitir uma maior flexibilidade nos horários para mitigar o stress e melhorar o bem-estar mental.
Os resultados reforçam ainda a necessidade de programas de formação, até junto de dirigentes, que aumentem a sensibilização para o bem-estar mental e para a saúde mental no local de trabalho. Ao treinar gestores e funcionários no reconhecimento precoce de problemas de bem-estar mental e de saúde mental, as organizações podem apoiar melhor seus trabalhadores, reduzir o estigma em torno da saúde mental e incentivar a intervenção precoce.
Cuidados metodológicos na leitura dos resultados do inquérito
Neste tipo de inquéritos, é preciso ter em atenção que a interpretação feita por quem responde das perguntas pode levar a uma avaliação relativa face às expectativas (o que quem responde esperava/gostava que fosse a realidade). Não temos qualquer informação sobre o ponto de referência.
A solidão auto-reportada na resposta à pergunta feita no inquérito poderá ser diferente das medidas de solidão construidas com base em experiências (também auto-reportadas) das pessoas em várias dimensões, o que poderá influenciar comparações com outros estudos.
Certamente que outras pessoas terão outras observações, e potenciais explicações para os resultados. Ao debater estes resultados vai-se construindo um conhecimento comum, útil para perceber a realidade em dimensões menos conhecidas em geral, e para definir que mais precisamos de saber nestas áreas.
[1] Expert Panel on effective ways of investing in Health (EXPH), Supporting mental health
of health workforce and other essential workers, 2021, https://health.ec.europa.eu/document/download/d8878481-11d9-46fe-b46d-ae3b1eae5513_en