Na subsecção “constrangimentos estruturais e oportunidades”, Costa Silva propõe falar-se das “medidas profundas” para ultrapassar “constrangimentos estruturais”. Como primeiro passo teria sido útil que apresentasse, por ordem de importância para o “desenvolvimento económico do país”, que constrangimentos identifica e que “instrumentos” ou “medidas” contribuem para que seja ultrapassado, bem como identificar os agentes económicos cruciais para que essas medidas tenham sucesso. Ainda antes de falar das medidas, parece-me claro que faltou algum método na abordagem a esta matéria, que é afinal o que deverá ser o “esqueleto” central do Plano.
Mas vamos às medidas, por ordem da sua apresentação.
1-“Colocar as empresas no centro da recuperação da economia, transformando-as no motor real do crescimento e da criação de riqueza”, com o objectivo de melhorar as suas competências digitais, a “qualificação dos recursos humanos”, a sua participação em programas de inovação, viradas para os mercados externos. Creio que se formos aos programas de governo e dos partidos políticos dos últimos 30 anos que fizeram parte de governos encontraremos objectivos muito semelhantes. O importante é perceber porque é tão difícil alcançar este objectivo, e porque apenas escrevê-lo não fará necessariamente acontecer. Além disso, os “baixos salários” não são exatamente uma escolha, e sim uma consequência da produtividade das empresas, e aqui é certamente relevante ir olhar para as condições de mercado de trabalho (e para evitar problemas de ser uma “visão neo-liberal”, a sugestão é mesmo ir ler o livro de Mário Centeno sobre o mercado de trabalho de há meia década atrás).
Três comentários a esta “medida profunda” (dado que não é “constrangimento estrutural”, “colocar as empresas (…)” tem que ser medida): a) não depende apenas da vontade governamental, e aparenta na verdade ser mais dirigida ao sistema de educação e formação profissional (para das as qualificações, habituar desde cedo a trabalhar no mundo digital, etc.) do que às empresas. A menos que seja apenas a ideia de “despejar” dinheiro nas empresas para que adiram ao digital, para que qualifiquem recursos humanos, e por aí fora. Mas se não vier a predisposição dos trabalhadores para o efeito, então o resultado será sobretudo o dinheiro desaparecer; b) não é claro que este “colocar das empresas no centro” se refere a ajudar as existem a não desaparecer ou se é dada preferência ao nascimento de novas empresas como fator de renovação. São dinâmicas muito diferentes para a economia, sobretudo se se pretende uma transformação da estrutura produtiva. Uma “mudança profunda” seria uma maior preocupação com o “nascimento” de novas empresas, o que significa medidas transversais, e não com apoiar as empresas hoje presentes no mercado (que também podem beneficiar dessas medidas transversais, naturalmente); c) É importante também que se tenha em mente, o que não resulta do que está escrito no Plano Costa Silva, que ao nível do país, o aumento da produtividade média pode decorrer de cada empresa aumentar a sua produtividade mas também de se expandirem mais rapidamente as atividades com maior produtividade (o que pode mesmo significar contração das atividades de menor produtividade, pelo que apoio a empresas pouco produtivas mas que já estão no mercado é um “apoio” ao “baixos salários”.
Passando agora à segunda “medida profunda”: “criar condições (…) para a diversificação da economia, tornando-a mais resiliente” e “alinhando (…) com o conceito de “autonomia estratégica” da Europa”, seguindo-se menção à produção de bens de equipamento, biotecnologias, medicamentos, dispositivos médicos, economia do mar. Não há qualquer razão para serem estes e não outros os sectores relevantes, nem se sabe em que é baseada a sua escolha. Sobretudo porque este tipo de apostas só sobrevive se as empresas forem as melhores, ou parte das melhores, no panorama europeu. Não basta querer. Além de não saber o que significa, em termos operacionais, uma “economia mais resiliente” e como se vai aferir o contributo de medidas específicas que procurem atingir esse objetivo. E se para ser mais resiliente tiver que ser menos inovadora? Como se vai lidar com as tensões entre os vários objetivos? Tudo isto, a partir da “reorganização das cadeias logísticas e de produção”, o que não estou a ver como se vai fazer em termos de políticas públicas.
“Medida profunda nº3”: “diversificar a economia em articulação com o perfil de especialização do sistema produtivo nacional” – mas diversificar já estava na medida anterior, tal como as “vulnerabilidades” mencionadas, a cuja resistência deverá estar ligada a noção de “resiliência” da “medida profunda nº2”. E não entendo a referência ao envelhecimento da população no contexto da especialização do sistema produtivo nacional. Aliás, se temos uma população envelhecida, e se os outros países também evoluem nesse sentido, não seria uma “vantagem” ter experiência nacional dos produtos e serviços que essa população envelhecida está interessada em utilizar para diversificar, inovar, colocar valor acrescentado e fugir aos “baixos salários”?
A “medida profunda nº4” é “Responder a estas limitações estruturais através de um investimento forte na ciência” (e em várias outras coisas, incluindo infraestruturas várias, e capital de risco). Como não foram apresentadas as limitações estruturais (pelo menos, de forma a que conseguisse perceber quais eram), é difícil avaliar quais os investimentos que serão mais interessantes (e o que significa serem interessantes – os que diversificam mais a estrutura da economia, os que promovem mais o crescimento da produtividade, os que estão alinhados com a “autonomia estratégica” da Europa? todos eles? Apenas os que consigam atingir ao mesmo tempo estes três objetivos?). Uma abordagem diferente é o resultado final que se pretende alcançar e não no controle do “ processo”, que será impossível de realizar numa economia “centrada nas empresas” (ver acima o primeiro ponto desta lista do Plano Costa Silva).
A “medida profunda nº5” é “contrariar as limitações do mercado interno”, e fala em facilitar a “consolidação das empresas” e a “criação da massa crítica”. Esta medida tem duas componentes: a) participação nos mercados internacionais (é a única forma de explorar economias de escala que não sejam possíveis pelo mercado interno); b) dimensão mínima eficiente para operar nos mercados internacionais. O pior que poderia suceder seria criar grandes empresas nacionais por concentração de empresas mas que não operassem no mercado internacional. E é demasiado fácil usar o argumento da dimensão para criar concentrações de empresas que têm como principal fim explorar o poder de mercado no mercado nacional. Apesar destas ressalvas, este é um objetivo importante – a dimensão médias das pequenas e médias empresas portuguesas é muito provavelmente um dos problemas da estrutura produtiva nacional. O crescimento da dimensão deve então estar ligado à participação nos mercados internacionais, nem que seja ibérico apenas em alguns casos. Assim, os mecanismos de apoio ao crescimento da dimensão média deverão ser em primeira linha mecanismos que ajudem na internacionalização das empresas (o que poderá ser por remoção de obstáculos, e não apenas “despejar” dinheiro), e só numa segunda linha a facilitação da “consolidação das empresas”. Será provavelmente até melhor sinal para o futuro que a consolidação ocorra por serem as empresas mais produtivas e dinâmicas a comprarem os ativos produtivos das empresas menos produtivas – mecanismos que ajudem no crescimento orgânico das melhores empresas e na saída rápida das que não têm possibilidade de sobreviver.
(amanhã, ou depois, continua a análise…)