Hoje, recupero dois temas: nomeações para ULS, com um olhar mais detalhado sobre 4 casos, explorando um pouco mais os dados da semana passada, e as PPP – Parcerias Público – Privadas, para a gestão das unidades do SNS.
Nomeações
Na semana passada, apresentei uma avaliação global das novas unidades locais de saúde (ULS) para ter uma primeira visão sobre o seu desempenho.
Agora, é o momento de aprofundar a análise e examinar mais de perto algumas dessas unidades, especialmente tendo em conta o debate que continua sobre as nomeações para as administrações das ULS. Em declarações citadas pelo jornal Público e que podem ser ouvidas aqui, a Ministra da Saúde referiu que “que os resultados assistenciais e económico-financeiros “não são o único factor” a contribuir para a decisão de substituição das administrações”, focando também no alinhamento com a política do Governo em termos das alterações pretendidas e com permitir novas formas de liderança, e o novo Diretor-Executivo do SNS vai ser chamado ao Parlamento para dar a sua visão sobre o tema da instabilidade nas administrações.
O Presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH) sublinhou, em declarações públicas, a importância de uma justificação técnica para a substituição dos dirigentes das ULS (ver aqui e aqui).
Com a informação atualmente disponível de forma pública, é possível realizar uma análise inicial das mudanças ocorridas, à luz dos indicadores assistenciais e de desempenho, ilustrando que a preocupação expressa por Xavier Barreto pode ser considerada: os dados disponíveis permitem avaliar, ainda que de forma limitada, a qualidade da gestão, pelo menos como ponto de partida para maior profundidade na discussão. Além disso, essas alterações podem e devem ser alvo de escrutínio público, indo além de meras opiniões.
Para esta análise, selecionei quatro indicadores de desempenho e quatro das ULS que estiveram no centro das atenções devido à substituição das suas equipas de gestão. Os gráficos abaixo comparam os dados de janeiro a novembro de 2024 (último mês com informação pública) com o ano de 2023. Cada coluna representa uma ULS distinta, e cada linha, um dos indicadores analisados.
O que os dados mostram? Nenhuma das mudanças analisadas parece ter sido motivada por uma deterioração evidente dos indicadores. Vejamos caso a caso.
Conflitos internos – ULS Amadora Sintra
A equipa gestora da ULS Amadora-Sintra saiu por demissão, motivada por conflitos internos que não estavam a ser resolvidos. Contudo, os dados não apontam para uma menor capacidade global de gestão desta ULS. É possível que esses conflitos internos tenham tido uma visibilidade pública desproporcional às suas consequências imediatas no desempenho da ULS. Certamente que a dificuldade em resolver situações internas (importantes) é um problema de gestão a ser tido em conta na avaliação, embora não deva fazer esquecer o desempenho global.
Bom desempenho, substituições frequentes – ULS Tâmega e Sousa
A substituição da equipa da ULS Tâmega e Sousa também não parece ter sido motivada por uma pior performance. Os indicadores analisados revelam uma evolução positiva. O que é provavelmente também resultado da gestão anterior, uma vez que a atual equipa que vai ser substituída está em funções há um ano apenas. Ter duas substituições consecutivas em tão pouco tempo, nomeadas por governos diferentes, pode ser mais problemático para o futuro do que a qualidade intrínseca de cada equipa de gestão.
Apoio Interno e Desempenho Estável – ULS Gaia Espinho
Neste caso, a equipa anterior gozava de forte apoio interno e era percecionada como eficaz. Os dados sugerem uma evolução global essencialmente neutra, com bons resultados no indicador de acesso. No entanto, continua a haver dificuldades na gestão financeira, nomeadamente no controlo dos pagamentos em atraso. Se o orçamento inicial era insuficiente, essa situação pode não ser completamente atribuída à equipa de gestão. Ou seja, as duas situações não serão totalmente independentes. Em qualquer caso, não há um motivo quantitativo evidente, resultado destes indicadores, para a substituição.
Turbulência na relação e resultados positivos – ULS Almada-Seixal
A substituição da equipa da ULS Almada-Seixal foi a mais tumultuosa, mas os indicadores analisados não sugerem um desempenho inferior em 2024 face a 2023. Pelo contrário, há uma melhoria significativa no indicador de acesso. No entanto, é possível que este indicador não capte totalmente dificuldades nos serviços de urgência, que têm sido apontados como um dos principais problemas da unidade.
Os indicadores utilizados foram os possíveis, mas as decisões de substituição das equipas de gestão das ULS devem ter sido tomadas com base em informação mais abrangente, incluindo dados qualitativos que provavelmente não são partilháveis publicamente.
Ainda assim, esta análise demonstra que é possível manter uma base factual mínima para discutir publicamente estas mudanças. Quando decisões estratégicas tão relevantes são tomadas, o escrutínio público deve ir além da retórica da discussão partidária e focar-se na avaliação objetiva do desempenho das equipas de gestão.Se queremos um Serviço Nacional de Saúde mais transparente e eficiente, é de esperar que as mudanças na liderança das ULS sejam também justificadas com critérios técnicos e evidência objetiva.
Seguem-se vários gráficos que mostram a evolução dos indicadores (fonte: https://www.sns.gov.pt/transparencia/), e após os gráficos, segue-se informação técnica sobre os indicadores, e discussão adicional sobre recrutamento para as administrações das ULS e sobre o relançamento das PPP.
Nota: em cada gráfico a linha vertical azul corresponde à criação da ULS, a linha vertical laranja corresponde à mudança da equipa ministerial (novo governo)
















(Informação técnica: Dívida Total, Vencida e Pagamentos em Atraso: Evolução mensal de valores para a dívida das instituições do SNS a fornecedores externos. Mortalidade por AVC Isquémico e Hemorrágico: Nº Falecidos AVC Hemorrágico em 30 dias / Nº Episódios AVC Hemorrágicos X 100 ; Nº Falecidos AVC Isquémicos em 30 dias / Nº Episódios AVC Isquémicos X 100. Inscritos em LIC dentro do TMRG (180 dias) Percentagem de inscritos em LIC (Lista de Inscritos em Cirurgia) com tempo de espera inferior ao Tempo Máximo de Resposta Garantida (TMRG). O objetivo deste indicador é apresentar em valor percentual a proporção do número de doentes inscritos para cirurgia, que se encontram a aguardar intervenção cirúrgica, dentro dos tempos máximos de resposta garantida, no total de doentes inscritos no fim do período em análise.)
Recrutamento para as administrações das Unidades Locais de Saúde
O outro lado da substituição das administrações das ULS é a escolha de quem é nomeado. Aqui, o debate político tem acentuado a escolha de base partidária, e surgiu a sugestão de escolha através de concurso público.
O elemento central é compreender como é possível recrutar pessoas para estas posições, e que pessoas estão disponíveis. Qualquer processo de seleção de pessoas para as administrações das Unidades Locais de Saúde se não tiver qualquer relação com critérios de alinhamento político terá naturalmente a nomeação com diferentes opções políticas, incluindo pessoas que estão alinhados politicamente com o Governo (tal como pessoas que estarão alinhadas com outros partidos políticos). Simplesmente apontar que se nomeiam pessoas que são do(s) partido(s) do Governo não significa obrigatoriamente que esteja a ser seguido um critério político. Até uma escolha aleatória a partir de um grupo de possíveis gestores terá essa característica.
Um segundo elemento a ter em conta é a forma como se chega ao conhecimento de quem possa estar disponível para ser gestor. Se houver a utilização de comunicação informal, mesmo incluindo recomendações baseadas em mérito, é natural que a rede de contactos de membros do Governo (ou da Direção-Executiva, quando esta teve a capacidade de nomear administrações de ULS) tenha um maior número de pessoas com o mesmo alinhamento político. As redes de conhecimento terão normalmente um enviesamento de proximidade natural, incluindo a visão política. Mais uma vez, mesmo que não haja um critério político explícito, poderá parecer de outro modo.
Assim, para se conseguir inferir a partir de nomeações realizadas que o critério político foi determinante é essencial “retirar” estes outros efeitos (de haver pessoas com opção politica próxima do Governo nos nomeados, mesmo que o processo de escolha não tenha esse critério em atenção). Só um trabalho de recolha dos perfis nomeados, e um maior conhecimento do possível campo de recrutamento, notoriamente difícil de fazer, poderá dar uma resposta de base estatística. Ou então haver a declaração de o critério de alinhamento partidário ter sido determinante (e há uma distinção grande entre alinhamento partidário e alinhamento político, no sentido de alinhamento com as mudanças pretendidas pelo Ministério da Saúde de cada momento).
Neste aspeto, é útil perceber o que se passa noutros países europeus (ver aqui, aqui e aqui). Cada país tem uma forma de recrutamento das administrações hospitalares que reflete as estruturas e prioridades específicas de cada sistema de saúde. Naturalmente, todos procuram garantir uma liderança hospitalar eficaz.
Em França, encontra-se um sistema centralizado, onde os gestores hospitalares são frequentemente recrutados a partir de profissionais formados na École des Hautes Études en Santé Publique (EHESP). Em princípio, garante uma boa formação técnica, embora limite a diversidade de perfis à frente das unidades.
Em Espanha, a descentralização pelas várias regiões autónomas leva a que estas nomeações sejam feitas no âmnito regionais, não sendo incomum a noção de o fator politico estar presente (quando ocorreram mudanças nos governos regionais, também houve mudanças nas administrações das principais unidades).
Itália, que possui igualmente sistemas regionais de saúde, não é muito diferente do que se passa em Espanha, embora seja mais explicita a exigência de qualificações técnicas. A importância relativa do mérito técnico e do fator politico aparenta variar entre regiões e ao longo do tempo.
Em Inglaterra, são utilizados concursos públicos, bem como empresas especializadas em recrutamento. É um sistema mais meritocrático.
A Alemanha, por seu lado, segue um modelo distinto, no qual os conselhos de administração dos hospitais operam com grande autonomia, decorrente também da propriedade do hospital (hospitais públicos, hospitais privados e instituições religiosas métodos distintos de escolha de gestores). O foco está na competência em gestão e na sustentabilidade financeira.
Há diferentes formas de equilibrar a necessidade de alinhamento com as políticas de saúde, a competência profissional e a estabilidade na gestão hospitalar.
Como se poderá melhorar o processo de recrutamento, é a questão central.
Um primeiro elemento é ter uma forma de identificar e abordar profissionais experientes em gestão de unidades de saúde, com um bom conhecimento das complexidades e do momento de transformação atual do Serviço Nacional de Saúde.
A utilização de empresas especializadas será uma opção natural, aliada à definição clara de perfis pretendidos.
Um segundo elemento é ter um bom envolvimento com o meio académico e as associações profissionais (Ordens profissionais e a Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares), para alargar a rede de potenciais candidatos interessantes e interessados nas posições disponíveis.
Um terceiro elemento é haver clareza, em geral, sobre que competências se pretende recolher com as nomeações (mesmo que não haja um concurso público) e que pacotes de remuneração são oferecidos, incluindo a componente de incentivos baseados no desempenho e com métrica de avaliação claras antecipadamente definidas.
A participação em programas específicos de educação executiva deverá estar presente, para desenvolvimento das capacidades de gestão dos nomeados.
Um quarto elemento é o recurso ao concurso público, mais moroso e oneroso, situação em que se deverá contemplar igualmente a contratação de gestores portugueses no exterior, e até a contratação de gestores de unidades de saúde de outras nacionalidades, criando um campo mais amplo de recrutamento.
Segundo tópico, relançar as Parcerias Público-Privadas
O segundo assunto é a possibilidade de se retomarem Parcerias Público – Privadas (PPP) para a gestão de unidades do SNS, tal como anunciado recentemente em entrevista. As PPP são um instrumento à disposição do SNS, e como tal não deve ser excluída a sua utilização, se e quando for vantajoso.
Com um processo de atribuição da PPP que seja concorrencial, torna-se mais fácil assegurar que há essa vantagem, em termos assistenciais e em termos de despesa para o Estado. Se não houver essa vantagem, o Estado pode sempre optar por não atribuir o contrato da PPP. Dito isto, a criação de qualquer PPP é um processo demorado, e tem de resultado num contrato bem elaborado.
Existe atualmente apenas uma PPP com gestão das atividades clínicas, no Hospital de Cascais, tendo sido terminadas as outras três que existiram durante 10 anos (Braga, Vila Franca de Xira e Loures). As PPP referentes à infraestrutura física destes três últimos hospitais continuam a existir, uma vez que desde o momento inicial tinham um horizonte mais alargado que as PPP para a gestão das atividades clínicas.
Esta característica é importante para se compreender melhor o que sejam as intenções do Governo. Ao falar-se de PPP para gestão no SNS, há diferentes alternativas: a gestão de uma ULS como um todo (incluindo por isso hospitais e cuidados de saúde primários) ou a gestão de um hospital (ou centro hospitalar) de uma ULS.
A ULS poderá ter também, ou não, unidades de saúde familiar modelo C, e como tal geridas com contrato com um parceiro privado.
O hospital poderá, ou não, ter uma PPP para a gestão da infraestrutura física. As configurações que podem surgir são várias, e com consequências diferentes em termos das necessidades de regras contratuais. Assim, consoante a unidade concreta do SNS, deverá ser estabelecido um contrato eventualmente diferente.
O processo de concurso para escolha do parceiro privado e depois a negociação exata dos termos contratuais (preço, penalizações em caso de incumprimento, indicadores de qualidade assistencial a serem cumpridos, etc.) é longo e com custos significativos para as partes envolvidas, Estado e candidatos (sendo que todos menos um terão um custo de preparação de propostas que não será recuperado).
Para que este processo concorrencial de atribuição da PPP funcione será necessário ter mais concorrentes interessados que contratos de PPP a serem atribuídos.
Se houver quatro PPP a concurso, e apenas três interessados em cada um quer apenas uma PPP, dificilmente haverá concorrência, e a eventual vantagem de gestão do sector privado face ao sector público dificilmente será passada para o sector público através de um preço mais baixo proposto pela entidade privada.
Se cada parceiro privado quiser ter pelo menos 2 PPP, retoma-se o grau de concorrência necessário para a adjudicação por concurso de cada PPP gerar mais vantagens para o SNS.
Ter um número grande de PPP ao mesmo tempo, sem avaliar quantas delas são interessantes para o conjunto dos operadores privados, nacionais e eventualmente internacionais, será arriscar a que haja manutenção de gestão pública por falta de candidatos privados interessantes.
Assim, a complexidade inerente às várias configurações possíveis, aliada à necessidade de ter mais concorrentes que PPP a atribuir, sugere que dificilmente se lançarão simultaneamente mais de três ou quatro concursos.
O interesse das entidades privadas poderá não ser muito, sobretudo se anteciparem que o ciclo político terá probabilidade razoável de não dar tempo suficiente para o atual Governo lance e conclua o processo de seleção do parceiro privado. Caso em que essa expectativa é ela própria geradora de menores resultados para a PPP.
É importante que a discussão se venha a centrar também nas partes técnicas do estabelecimento de PPP, e não unicamente no princípio de ter ou não ter gestão privada no Serviço Nacional de Saúde).
Ou seja, é uma discussão mais exigente para os partidos políticos do que apenas manifestarem-se a favor ou contra.