Tendo saído, no último dia de Outubro, a informação mensal sobre a execução orçamental, o valor de Setembro para os pagamentos em atraso pelos hospitais do SNS vem na linha dos meses anteriores. Tudo indica que no final do ano será necessário haver a habitual “transferência extraordinária”. Com a atenção nas negociações entre governo e sindicatos médicos e nos fechos (parciais) de serviços de urgência, o acompanhamento da despesa estará em segundo plano (pelo menos).
(o ritmo mensal de crescimento mais recente corresponde à tend16_21 = 65.82 milhões de euros por mês em média desde o inicio de 2023)
Nestas últimas duas semanas tenho procurado seguir, como observador externo, as negociações entre o governo e os sindicatos médicos. Ontem terminou mais uma (longa) ronda dessas negociações. E aparentemente a principal linha divisória neste momento é o aumento salarial base. Não tenho a certeza de estar a compreender todos os argumentos, e sobretudo de estar a compreender o que é exactamente a posição de cada parte. Tentei organizar a discussão com base em algumas hipóteses simples. (aviso: este vai ser um texto longo, com contas e expressões matemáticas, para que possa ser tudo verificado).
Primeira hipótese, a medida relevante é o valor de salário por hora trabalhada – manter o mesmo salário mensal reduzindo o número de horas de trabalho corresponde a um aumento salarial por hora. Nas últimas declarações, o Ministro da Saúde tomou esse ponto de referência, e bem.
Assim, qualquer que seja o valor de salário mensal, a passagem de 40h para 35h é equivalente a um aumento salarial de 14,3%, só por alteração do horário de trabalho.
Segunda hipótese, quer-se manter a atividade assistencial – ou seja, quer-se manter o volume total de horas médico utilizadas no SNS. Se não houver contratações adicionais (o que levará o seu tempo), se levar o seu tempo a obter ganhos de eficiência por reorganização de funcionamento, então essa condição terá de ser obtida por horas de trabalho suplementar. Para simplificar o argumento (e porque não possuo a informação detalhada sobre o assunto), suponhamos que a passagem para o horário de 35h implica que as 5h semanais em falta serão compensadas por trabalho suplementar dos mesmos médicos. Acabam por manter as 40h de trabalho semanal mas as 5h (das 36h para as 40h) serão pagas como trabalho suplementar. Ou seja, para o mesmo número de horas anteriormente trabalhado, terão um aumento salarial em 5/40 do horário correspondente à majoração do trabalho suplementar face ao horário normal. É também este, e enquanto houver estas horas suplementares, um aumento do valor médio por hora trabalhada.
Terceira hipótese, o aumento salarial no salário base reflete-se automaticamente no valor hora de trabalho suplementar (que é definido como uma majoração percentual face ao salário hora base).
Estas hipóteses permitem alguns exercícios numéricos que dão uma ideia do que possa estar em causa (sendo que há outros detalhes que certamente fazem alguma diferença, não tenho é possibilidade de os incluir a todos).
Para este exercício numérico, centrando no trabalho hora, é útil definir várias situações de valor hora recebido ao final do mês. Os elementos centrais deste exercício têm as suas expressões no final do texto, para que possam ser verificados (e corrigidos, se me tiver falhado alguma parte). A leitura das expressões finais e do texto seguinte deve ser feita em conjunto.
O primeiro valor, a que chamo S1, é o salário hora de partida, e que pode ser representado por salário hora x horas semanais (40h) / horas semanais (40h) (multiplicar e dividir pelo mesmo valor h0 vai ser útil para perceber os valores das restantes situações).
O segundo valor, S2, é o salário hora mantendo-se o valor nominal mensal (salário hora de partida x 40h = situação de partida no valor nominal) dividido pelo novo número de horas trabalhadas (h1).
O aumento salarial por hora presente na alteração do horário de trabalhos das 40h para as 35h é de 14,3% (igual a 40h/35h -1: pode ser confirmado através do cálculo de (S2-S1)/S1 com as expressões no final do texto).
Adicionando agora a condição de o SNS ter de manter a capacidade de atendimento, e de essa capacidade de atendimento no imediato só ser garantida com trabalho suplementar dos médicos, que é pago com uma majoração (lambda, lambda=50% como exemplo) por referência ao valor hora normal. Daqui resulta que o valor hora que é realmente pago em média aos médicos que mantenham as mesmas 40h de trabalho semanal, agora divididas em 35h de trabalho normal mais 5h de trabalho suplementar, é o valor S3 – o salário hora aumenta nesta circunstância por duas vias, a redução do horário de trabalho e o pagamento de 5h a uma taxa horária majorada no fator lambda. Nestas condições, o acréscimo de salário hora, para as mesmas 40h de trabalho semanal, é de 18,75%. No futuro, se não for necessário este trabalho suplementar esta diferença de aumento de salário hora devido ao trabalhos suplementar (18,75% – 14,3%) apenas por redução do horário normal de trabalho, não estará presente. Mas no curto prazo terá de fazer parte da solução de faseamento, e terá implicação para aumentos ao longo do tempo do salário base, se for pretendido que seja mantido esse aumento percentual.
É agora tempo de adicionar a alteração do valor de salário base, que aumenta de alfa, com alfa = 0,3 a ser os 30% de aumento do salário base (ver expressões abaixo). Este aumento de alfa no valor base é combinado, para dar o aumento total do valor hora recebido, com a alteração do horário de trabalho e com a compensação necessária de horas de trabalho suplementar para garantir a mesma capacidade de atendimento do SNS (no curto prazo). Leva ao valor S3 abaixo. O aumento do valor hora que resulta dos três elementos conjuntamente é
a) 54,38% se alfa = 0,3 = 30%, como defendido pelos sindicatos
b) 25,28% se alfa = 0,055 = 5,5%, como defendido pelo Ministério da Saúde
c) 30,00% se alfa = 0,095 = 9,5%.
Ou seja, para um aumento de 30% no valor hora recebido pelos médicos, nas condições de fazerem 35h de trabalho semanal, acrescidas de 5h de trabalho suplementar pago a 50% mais (condição necessária para garantir no curto prazo a capacidade de atendimento do SNS), então o salário base deverá ser acrescido de 9,5%.
Se com contratações adicionais e reorganização de serviços deixarem de ser necessárias estas 5h de trabalho suplementar, o salário base deverá subir cerca de 14%, para que garanta o aumento de 30% de aumento do valor hora recebido. Daqui resulta uma estratégia simples de faseamento, em que os médicos para o atual volume de trabalho, recebem um aumento de 30% no valor hora, e que conforme baixem do atual volume de trabalho, decorre um aumento de salário base que garanta os tais 30% pretendidos.
Elementos adicionais que podem fazer alguma diferença: 1) todo o outro trabalho suplementar realizado além das 5h de compensação da redução do horário normal de trabalho não foi incluído nestas contas, e dois efeitos vão estar presentes: o valor hora suplementar aumenta na medida em que o valor base aumentar, poderá com o tempo haver redução da necessidade deste trabalho suplementar; 2) parte do aumento salarial traduz-se, como em todas as remunerações em todos os sectores, em mais IRS pago, pelo que o valor liquido de aumento será menor por a taxa marginal de imposto ser superior à taxa médica, tipicamente, os níveis de vencimento em causa.
Coloquei o exercício numérico como dando todo o poder de negociação aos sindicatos, e não precisa de ser assim – podem acordar que o aumento imediato não é 30% mas algo menor. Se for cerca de 25% no valor hora, então os 5,5% do Ministério da Saúde serão suficientes. Contudo, nas atuais condições, dada a pressão sobre o funcionamento do SNS pela escusa à realização de trabalho suplementar, a sensação é que o poder negociar estará mais do lado dos sindicatos. Provavelmente, se o Ministério da Saúde tivesse feito esta negociação no início de 2023 teria a margem de manobra dada por ainda não se terem esgotado as 150h de trabalho suplementar acordadas contratualmente. Negociar sobre a pressão de fecho de serviços é mais difícil do que sem essa pressão.
Assim, se não tiver feito algum erro de contas (que pode ser verificado porque tentei descrever em detalhe os cálculos), focando no valor hora como sendo a métrica relevante para o aumento salarial, então um aumento de 9,5% no valor base permitirá satisfazer as pretensões dos sindicatos, desde que o atendimento seja mantido com trabalho suplementar de 5h. Em termos de faseamento, consoante for sendo reduzido o trabalho suplementar necessário, haverá uma compensação de aumento extra de até 14%, durante esse processo de eliminação da necessidade das 5h suplementares (resultantes da redução das 40h para as 35h de tempo normal).