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Notícias da semana que passou (5): Comentário a “Evolução do desempenho do Serviço Nacional de Saúde em 2024” pelo Conselho das Finanças Públicas

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O primeiro comentário ao documento “Evolução do desempenho do Serviço Nacional de Saúde em 2024” é reconhecer a relevância do Conselho das Finanças Públicas (CFP) fazer periodicamente uma apreciação do funcionamento do SNS, e colocar publicamente disponível essa apreciação. Permite-se desta forma a sua discussão, que deveria ir além das notícias do dia.

O sector da saúde não tem falta de escrutínio, seja a partir de entidades oficiais seja a partir de entidades e associações resultantes da organização da sociedade civil.

Um exercício interessante, que deixo para futuro, é a realização de uma agregação dos contributos dos vários relatórios, estudos e documentos que são produzidos sobre o SNS e sobre o sistema de saúde num ano, para criar uma fotografia consolidada. Cada um desses documentos acaba por ter um ângulo próprio e a sua junção dará uma visão mais completa.

O relatório do CFP incide sobre a execução orçamental, e como tal, mesmo que implicitamente, sobre as implicações que essa execução orçamental do SNS tem para o conjunto das contas públicas (afinal, o objeto principal de atenção do CFP).

É nesta linha que deve ser lido o relatório do CFP, bem como a “lista de compras” de assuntos para futuros relatórios do que julgo ser útil vir a incluir.

O Serviço Nacional de Saúde tem dois lados distintos: o lado da proteção financeira dada contra a incerteza das despesas em cuidados de saúde que uma pessoa possa vir a necessitar (função seguradora, que terá de financiar despesas de saúde) e o lado de prestação de cuidados de saúde, em que através da operação direta de unidades de prestação de cuidados de saúde procura assegurar que há acesso aos cuidados de saúde necessários, implicitamente assegurando também a função de proteção financeira quando estabelece um acesso às suas unidades sem custos ou a custos reduzidos para os cidadãos.

O ponto de partida da análise do CFP é sobre este segundo elemento – o SNS enquanto entidade que tem uma rede própria de prestadores de cuidados de saúde. Daí o foco no movimento assistencial.

A minha primeira adição à “lista de compras” é a existência, no futuro, de uma secção dedicada à promoção da saúde, e por dois motivos. O primeiro será óbvio: o futuro da capacidade do SNS em conseguir assegurar o seu papel sem desequilibrar as contas públicas tem de se basear numa população mais saudável e com menos necessidades de recurso ao sistema de saúde. Ou seja, fazer menos em movimento assistencial porque não é preciso (e não por limitações de acesso). Ajudar a desfocar de “fazer mais é sempre melhor” ajuda a focar no objetivo central de “melhor saúde”. 

O segundo motivo é que há muito de promoção da saúde e prevenção da doença que é feito pelos cuidados de saúde primários e não surge (nunca) nas estatísticas oficiais dessa forma. 

O desafio ao CFP é o conseguir ter uma avaliação do que é a promoção da saúde e prevenção que considere tudo o que é feito, e não apenas o que é gasto em programas específicos. A minha conjetura é que existe uma subestimação importante do que é feito neste campo. E dado o seu contributo de longo prazo para a estabilidade das contas públicas na menor despesa do SNS, fará sentido receber atenção.

Destro das secções dedicadas aos cuidados de saúde primários, aos cuidados hospitalares e aos cuidados continuados, o relatório documenta o crescimento da atividade, em geral.

Os valores apresentados, sendo esperados de alguma forma transmitem uma visão globalmente positiva em 2024,

Ainda assim, gostaria de ter visto uma análise detalhada em dois pontos específicos. Nos cuidados de saúde primários, quais as consequências, de saúde da população e de despesa global, da falta de médicos de família para um seguimento regular dos residentes em Portugal.

Nos cuidados hospitalares, as consequências financeiras da crescente atividade em SIGIC e suas eventuais externa cidades negativas para o funcionamento regular dos serviços hospitalares.

Nos cuidados continuados, a crescente necessidade de oferta deverá levar também a uma avaliação das tipologias de resposta, nomeadamente novas formas de acompanhar utentes na sua residência, com um maior número de tipos e gradações de apoio e acompanhamento.

Apenas na secção dedicada aos riscos assistenciais surge a referência aos pagamentos diretos das famílias, que são uma falta de proteção financeira em caso de necessidade. Ao ligar esses pagamentos diretos à falta de acesso ao SNS, implicitamente acerta-se que a única, ou a principal forma, de dar proteção financeira é através de acesso a prestação direta de cuidados de saúde pelo SNS. Essa premissa pode ser desafiada e colocar-se a questão de como assegurar proteção financeira quando o SNS não consegue dar acesso direto às unidades de prestação de cuidados de saúde em tempo adequado.

Ter uma secção dedicada à proteção financeira e às consequências para as contas públicas de diferentes formas de assegurar a proteção financeira da população face a despesas em cuidados de saúde que sejam necessários. é o segundo elemento da minha “lista de compras” para futuros relatórios do CFP.

O capítulo 2 trata da conta do SNS. Aqui, o relatório a CFP nota, e bem, a importância de vir a olhar para o balanço consolidado.

A análise da evolução da despesa corrente em saúde, em comparação internacional, sendo usual estar presente neste tipo de relatórios é, a meu ver, globalmente pouco informativa. 

Por um lado, olhar para despesa sem olhar para os resultados, ou benefícios, dessa despesa é uma visão incompleta. Países podem gastar mais ou menos em cuidados de saúde consoante têm mais ou menos riqueza e consoante dão mais ou menos importância a esta área.

Mais interessante, a meu ver, será saber que resultados de saúde adicionais se conseguem por gastar mais.

É uma sugestão de análise complementar nesta secção.

E seria uma boa contribuição para o nosso conhecimento dado que os outros relatórios, estudos e documentos que vão sendo disponibilizados sobre o sistema de saúde português
normalmente também não incluem essa análise.

Por outro lado, uma mesma evolução da despesa pública pode refletir realidades muito distintas consoante seja resultado de aumento de preços/custos, de aumento de atividade (quantidade, movimento assistencial) ou de variação da proteção financeira dada.

Esta decomposição surge explicitada quando se referem as despesas com pessoal e poderia ser mais generalizada, com um esforço de separar efeitos preço e efeitos volume noutras áreas de despesa pública.

Apresentar a decomposição da variação da despesa pública em saúde em termos da variação dessas três componentes é o terceiro ponto da minha “lista de compras”.

A evolução do saldo do SNS é preocupante pela falta de capacidade de previsão que revela (o orçamento aprovado previa um saldo nulo) ou falta de capacidade de controlo da despesa (e aqui volta a ser relevante a distinção anteriormente mencionada sobre que elementos estão subjacentes ao aumento da despesa pública).

Na sua análise, o CFP apresenta informação detalhada e útil para compreensão da estrutura das receitas do SNS.

Sendo certo que as unidades do SNS devem faturar e cobrar quando adequado, é necessário reconhecer que a esmagadora maioria das receitas (financiamento das unidades do SNS terá como origem o Orçamento do Estado, por definição do que é o SNS.

Aqui, adiciono a preocupação com situações de abuso na facilidade de acesso ao SNS que possam existir, eventualmente associadas ao que o relatório descreve como “aumento da proporção a utentes estrangeiros atendidos no SNS que não se encontram ao abrigo de nenhum tipo de protocolo”.

No campo das despesas, é de realçar a informação sobre o aumento das despesas com pessoal (+12,18 face a 2023), sendo resultado sobretudo de efeitos preço/custo (efeito volume de apenas +0,92)

As diferentes medidas do ano de 2024 foram importantes ao nível remuneratório.

De evidenciar também uma concentração do trabalho suplementar em poucas unidades (de grande dimensão e de grande diferenciação nas suas valências clínicas), o que deve motivar uma atenção a mecanismos que consigam reduzir o trabalho suplementar sem comprometer a atividade assistencial.

Além da despesa com pessoal, surge como relevante o aumento da despesa com medicamentos, novamente com a separação entre efeito preço e efeito volume ser relevante ser feita, bem como, em análises futuras, procurar-se compreender qual o valor desses aumentos de despesa (seja em melhor saúde para a populaça, seja em recuo de despesa que teria lugar noutros pontos do sistema de saúde e do SNS, quando se trata de despesa pública).

Como tem sido usual, a despesa de capital ficou aquém do orçamentado, compensando muito parcialmente o aumento não previsto da despesa corrente.

Na avaliação dos principais riscos orçamentais, a diversificação das fontes de financiamento do SNS não será possível nem provavelmente desejável no atual quadro de proteção financeira assegurada pelo SNS. Ao colocar o foco nas necessidades decorrentes do envelhecimento populacional, deixando de lado os elementos de evolução tecnológica, há um implícito destacar de efeitos volume (que são lentos no caso do envelhecimento) em detrimento de efeitos preço que são rápidos, fortes e mais suscetíveis de intervenção).

Não acompanho, pois, a preocupação com promover uma maior diversificação do financiamento do SNS. Sobretudo sem haver uma clara definição do que é e de como assegura a proteção financeira das Famílias de forma equitativa.

Acompanho a preocupação com o crescimento da despesa do SNS, devendo-te focar em melhorias na qualidade de gestão, introdução de inovação organizacional que leve a menor despesa para o mesmo movimento assistencial, estabelecimento de preços adequados nas aquisições (com destaque para os custos da inovação, medicamentos Incluídos, mas não exclusivamente) e deteção e eliminação de desperdícios e fraude.

Acompanho a Ideia sobre o papel das oportunidades geradas pela transição digital.

No capítulo 3, dedicada à dívida e aos prazos médios de pagamento, considero enganadora a imagem transmitida pelo Gráfico 19. Os valores dos pagamentos em atraso no final do ano transmitem uma imagem de controle da situação que não é real quanto à dinâmica subjacente.

O crescimento ao longo do ano, reduzido no final do ano por transferências extraordinárias, passa despercebido, e como tal continua-se a perpetuar as disfuncionalidades dos ciclos de crescimento da dívida e de pagamentos em atraso solucionados por “despejar” dinheiro no final do ano para este gráfico dar uma visão positiva. Todos os anos as Injeções de capital são muito significativas.

Para qualquer equipa de gestão numa unidade do SNS é mais “rentável” assegurar um bom lugar à mesa desta “injeção” de capital do que melhorar a sua gestão interna.

O último ponto da minha “lista de compras” é que num futuro relatório de CFP seja feita uma apreciação quantitativa cuidada de quanto este ciclo de divida – injeção de capital custa às contas públicas.

Nota final: apesar das minhas observações incidirem sobre pontos de melhoria do relatório, considero muito positivo este exercício regular de análise do CFP, e fico a aguardar pela versão de 2025, que talvez possa vir a satisfazer alguns dos pontos da minha “lista de compras”. 

(imagem criada com recurso a IA)

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Autor: Pedro Pita Barros, professor na Nova SBE

Professor de Economia da Universidade Nova de Lisboa.

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