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Poupança, riqueza e a política do Bloco de Esquerda

9 comentários

Agora que o Bloco de Esquerda é parte da solução governativa, é importante dar atenção ao que são os seus instintos profundo, os que constituem na realidade o seu programa político, pois será assim que serão insistentes para com a governação socialista. E as recentes declarações de Mariana Mortágua (aqui), “do ponto de vista prático, a primeira coisa que temos de fazer é perder a vergonha de ir buscar a quem está a acumular dinheiro” traduzem esse instinto profundo, e uma visão de sociedade.

Se à primeira vista a preocupação com as desigualdades suscita compreensão e até empatia, o “modelo” de sociedade que está subjacente às afirmações não foi explicitado, e deverá ser difícil explicitar pois dificilmente conseguirá ser coerente com valores base de liberdade e democracia. Tomado literalmente significa que o Bloco de Esquerda é avesso à poupança, a qualquer poupança, e que redistribuirá essa poupança. Parece ter também a ideia de que “acumular” é mau, inerentemente mau. Ora, um sistema económico dificilmente consegue sobreviver em liberdade sem haver poupança e liberdade de cada um utilizar o fruto do seu trabalho da forma que entender, dentro das regras gerais da sociedade. E até a solução para combater as desigualdades tem uma conotação negativa: em vez de melhorar os que estão pior, há que trazer para baixo os que conseguirem melhorar. Antecipo que nos próximos dias Mariana Mortágua venha esclarecer que não é contra a poupança dos trabalhadores, que estava a falar dos 0,01% em acumulação da riqueza, ou seja reposicionar a sua afirmação na corrente politicamente correcta. Porém, será apenas reposicionar, pois a convicção das palavras é a da visão profunda de acumular ser mau, e apenas a redistribuição ser o único objectivo social, e que pretende apenas colocar em causa o “capitalismo que temos” (ou alguma variante deste termo).

Mais importante seria explicitar qual o seu modelo alternativo de funcionamento económico – sem poupança, não há fundos privados para serem canalizados para investimento, e terão que vir de poupança pública (impostos superiores às despesas do Estado, mas espera se vai tudo para redistribuição também não há poupança pública…) ou de poupança externa (mas quem vai querer investir cá, e ter investimento estrangeiro não é vender o país aos capitalistas dos outros países?). Bom, então passemos sem investimento, nem público nem privado. Sem investimento, e sem capacidade de acumular resultados positivos na actividade económica, as empresas desaparecem. Não tem problema, neste modelo alternativo o sector público assume o que for preciso. Mas quem decide no sector público esse funcionamento económico? e como o equilibra com a redistribuição (admitindo que ainda haja alguma coisa para redistribuir)? bom, se alguém o faz, fica com grande poder e grande poder chama a corrupção. Bom, o melhor é mesmo manter algumas empresas privadas mas fixar todos os preços que praticam (espera, isso já está a ser tentado na Venezuela, com os resultados de escassez e escalada de crime). Ou seja, não é nada claro que haja um “modelo” alternativo na mente de Mariana Mortágua que possa funcionar.

Mas o que está subjacente à afirmação é errado até no sentido mais próximo de não ser a melhor forma de alcançar o que pretende. A melhor forma de reduzir as desigualdades é fazer subir quem está em baixo, e nesse processo a “acumulação”, a poupança, é um elemento essencial, e não apenas a redistribuição. (ver aqui uma análise séria sobre o papel das poupanças na mobilidade social e económica, e na redução das desigualdades de rendimento).

Adicionalmente, estas afirmações facilmente sugerem que depois do “acumular de casas” outras medidas possam aparecer (por exemplo, porque não tributar outros instrumentos de poupança, perdão acumulação, como os certificados de aforro e outros instrumentos de colocação da dívida pública?). O receio de qualquer manifestação de acumulação, digo poupança, ser tributado para redistribuir poderá fazer desaparecer essas poupanças, ou por consumo ou por serem colocadas em instrumentos dificilmente observáveis – para os “ricos”, certamente aplicações no exterior, para os outros talvez ouro ou simplesmente o tradicional colchão. Não tenho a certeza de qual será a forma de ajustamento, mas se o princípio anunciado pelo Bloco de Esquerda e tacitamente aceite pelo PS é tributar a “acumulação”, quem “acumula” irá alterar o seu comportamento e todas as formas que consigo pensar de ajustamento de decisões não são a favor de fomentar o crescimento económico ou da produtividade, essencial para a melhoria das condições de vida das pessoas.

Há ainda os que recebem a redistribuição, afinal isto deve ser neutro, certo? estamos só a tirar de uns para dar a outros. A “pequena” questão é como os comportamentos económicos de uns e de outros se alteram. Um exemplo extremo ajuda a clarificar a minha preocupação. Suponhamos que se pretende que todos tenham o mesmo rendimento, independentemente de estar ou não a trabalhar. Se isso for assegurado, a opção de trabalhar, ou não trabalhar, deixa de ter qualquer implicação para o rendimento, por definição. Logo, quantas pessoas optarão por trabalhar? Se houver um número suficientemente grande de pessoas que deixa de trabalhar como assegurar os bens e serviços essenciais? será necessário obrigar a que as pessoas trabalhem, numa lógica de “escravatura de Estado”? o modelo económico vigente leva a que à existência de trabalho pela expectativa de “acumulação” (poupança) e pela necessidade de rendimento. Desaparecendo ambas com a política de “ir buscar a quem acumula” para redistribuir, então o caminho para a pobreza material ou para “escravatura de Estado” encontra-se aberto.

E por fim, pelo menos neste post, a interferência com a liberdade económica de poupar/acumular, sacrificando consumo hoje para poder ter algo mais no futuro. Se duas pessoas com o mesmo rendimento do trabalho tiverem opções diferentes, em que uma decide poupar para dar mais educação aos seus filhos ou para ter um tempo de reforma melhor (podendo incluir nessa forma de poupança adquirir imóveis para usufruto próprio ou como fonte de rendimento para o futuro) e outra decide fazer todos os anos viagens de turismo fabulosas, porque deve ser a primeira penalizada com tributação adicional? Não se quebrará de forma injusta a igualdade na liberdade de usar os rendimentos que alcançar?

Não sei se receio mais que a afirmação seja resultado de um “modelo” económico alternativo que está presente na atuação do Bloco de Esquerda (embora o seu manifesto eleitoral de 2015 não permita perceber que modelo de funcionamento económico da sociedade pretendem, pois tem apenas ideias avulsas e não um visão global da sociedade), ou que seja resultado do entusiasmo do momento, sem ter pensado em todas as consequências do que a afirmação significa.

 

Autor: Pedro Pita Barros, professor na Nova SBE

Professor de Economia da Universidade Nova de Lisboa.

9 thoughts on “Poupança, riqueza e a política do Bloco de Esquerda

  1. O pior foi o discurso de António Costa secundarizando-a emocionalmente e não só, embora com pequenas nuances, na defesa da igualdade, no fim do sigilo fiscal e na taxação para além dos rendimentos do trabalho aqui ele falou em outros rendimentos e não em bens. Prepara-se para acabar com as taxas liberatórias no arrendamento e outras?

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  2. Recebido via facebook

    [1] A MM perdeu o tino! O que ela propões corresponde a pedir as fam´lias que não façam poupanças!

    [2] Eu suponho que isto seja ortodoxia da esquerda de taxar as grandes fortunas e não tanto as “poupanças” (eles fazem a distinção). No entanto continua a ser disparatado – nada contra taxar rendimento ou mesmo taxar consumo (no segundo caso, está-se a taxar as tais fortunas de forma indirecta), agora taxar bens não.

    Pedro Pita Barros: essa é a interpretação benévola, e então convém definir o que são as “grandes fortunas” e porque devem ser tributadas – mas a afirmação foi sobre “acumulação”, e redistribuição – extremei o que possa ser a concepção de economia e sociedade por detrás deste tipo de afirmação, mas não sei a que distância se está dela no BE, e é isso que me preocupa – agora são as grandes fortunas, depois será o quê? poupanças de 50,000 euros de uma vida de um pensionista aplicadas em certificados de aforro porque o Estado é seguro? onde ficará a linha divisória?

    [2] Claro que foi sobre a “acumulação” – é a velha tese marxista da renda sobre o trabalho alheio, i.e., se os ricos conseguem acumular fortunas, fazem-no porque estão a pagar menos do que devem a quem trabalha. Sinceramente não percebo o “bruá” disto tudo porque é perfeitamente transparente e ortodoxo (à esquerda).

    A única ressalva que faço aqui nisto é que quem começou com a taxação dos bens de elevado valor foi o governo anterior, ao introduzir um imposto de selo de 1% ao ano sobre propriedades com valor tributário superior a 1 milhão de euros…

    Pedro Pita Barros: Eu percebo o argumento de que “acumulação” é provavelmente usada numa visão marxista, que se baseia em assumir que os ricos acumulam porque estão a tirar aos trabalhadores, mas numa sessão pública, do partido que está no governo, e de um elemento destacado de um partido que dá apoio parlamentar a esse governo, é de esperar que as declarações espelhem o plano politico desse partido. E é essa coisa a que chamo “instinto profundo” de que se deve tributar para redistribuir a todo o custo que me preocupa, porque depois das casas de valor muito elevado, virão as de valor médio, e depois o que for pouco móvel e facilmente tributável, e a pequena e média poupança começará a pensar onde poderá aplicar essa poupança para evitar ser um dia chamada de “acumulação indevida” e “redistribuída”. O sentido da governação e da tributação não pode olhar apenas para a redistribuição – de outro modo, ter todos com 5 é melhor que ter um com 6 e outro com 8, ainda que a preocupação inicial fosse um ter 4 e outro 20.

    [2] Certo, Pedro Pita Barros. Mas o BE (e a Mariana Mortágua, suponho que em parte pela história familiar e em parte por ser “nova” na política) tem muito menos filtro que o PCP. Como é óbvio, para eles o ideal é todos terem 0 e o Estado tem 100 e distribuir de acordo com a necessidade.

    Pedro Pita Barros: o problema é que nenhum estado consegue decidir o que é “necessidade” sem se tornar ditador, e um estado com 100 é um estado que dá o poder de distribuição a quem gere esse estado, e daí à corrupção é um pequeno passo; e para o estado ter 100, passamos à “escravatura” de estado. A própria ideia de que alguém pode decidir o que é a minha “necessidade” fere a minha noção básica de liberdade. Voltamos ao instinto profundo do que está na frase de MM.

    [2] Nem mais, Pedro Pita Barros. É por isso que não gosto de extremismos políticos de qualquer tipo: acabam sempre em regimes baseados na força.

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  3. Taxar os + ricos só mesmo para extremistas. (tou a tentar ser irónico)

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  4. Excelente texto. Obrigado.

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  5. Os governos até agora tem sido incompetentes de reduzir a sua divida pública A divida já alta e suficiente estaremos sempre a gastar dinheiro que temos ainda de ganhar A divida que as gerações futuras deste nosso infeliz Portugal terão que pagar de volta ? Se não economizar dinheiro e reduzir a divida alguém terá que pagar

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  6. Pingback: O bloquismo e a geringonça (7) – O Insurgente

  7. cada cavadela nova minhoca.

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