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Pacto para a saúde (1)

1 Comentário

Na apresentação e discussão do Orçamento do Estado, o Ministro da Saúde introduziu a proposta de um pacto para a saúde, cujos principais pontos estão disponíveis nos slides que apresentou (aqui, slide 28). A discussão destes pontos passou praticamente ao lado em termos técnicos, e mesmo em termos políticos. Em termos mediáticos, é sabido que houve, e há, outras distracções. Só encontrei um início de discussão, mas mais numa vertente político no SaudeSa. Ainda assim, vale a pena discutir os pontos levantados, sendo que a utilização de um powerpoint para isso é redutor por não se saber exactamente o que está por detrás de cada frase. Enfim, corramos o risco de mal interpretar o que lá está escrito. Como há muito tempo alguém me disse a propósito da escrita técnica, se o leitor não entende, a culpa é quem escreveu não ter sido suficientemente claro.

O primeiro ponto da lista é “Que percentagem da despesa pública para o SNS?”.

A minha reacção imediata é que há uma grande imprecisão, que faz uma grande diferença, na forma como se encontra formulada. A imprecisão está em não especificar se é percentagem “do PIB” ou percentagem “da despesa pública total”. Existindo estas duas possibilidades, pelo que tem sido expresso e relatado, a interpretação mais comum é de que se trata de percentagem do PIB. Mas a clarificação é necessária.

Colocada a pergunta desta forma, a minha resposta é “deve ser a percentagem adequada, no sentido em que a despesa realizada traga benefícios valorizados pelo menos tanto como esse valor de despesa.” Ou seja, fixar uma percentagem do PIB para a despesa pública em saúde é uma má ideia, a meu ver.

Os argumentos que tenho para esta posição:

a) fixar esta percentagem face ao PIB gera imediatamente uma despesa pública em saúde pró-ciclica – em tempos de recessão, ter-se-á que gastar menos do que em tempos de prosperidade. Se em termos de contas públicas é vantajoso esta pro-ciclicidade, em termos de necessidades da população não é tão claro que assim seja, nem é claro que essas necessidades tenham uma pro-ciclicidade que justifique a despesa. Acresce que as variações anuais do PIB podem ser substanciais e o ajustamento na despesa do SNS acabará por ser em termos de despesa variável e não despesa fixa, o que poderá criar maiores problemas do que se fosse um ajustamento de longo prazo. Ter a despesa do SNS a flutuar de acordo com a conjuntura não será a melhor opção. Curiosamente, aqui fixar uma percentagem da despesa pública total para a saúde tem a vantagem de a tornar mais pró-ciclica, na medida em que outras despesas, nomeadamente de protecção social, são pró-ciclicas.

b) em termos de longo prazo, haverá forças para que esta despesa em saúde tenda a aumentar. Só por si o efeito de aumento da produtividade no sector da saúde (e noutros sectores onde há um elevado elemento de capital humano) inferior ao aumento da produtividade em geral fará com que a percentagem do PIB para a saúde vá aumentando. Se não for despesa pública acabará por ser despesa privada, e provavelmente em despesa directa das famílias se o SNS reduzir a sua participação. Claro que podem surgir seguros de saúde privados que cubram os co-pagamentos ou taxas moderadoras do sector público, mas não creio que o grau de protecção dado pelo SNS deva estar dependente da evolução do PIB.

c) em termos de economia política, compreendo que a fixação da percentagem do PIB para a despesa pública em saúde dá um reforço da posição negocial do Ministro da Saúde à mesa do orçamento. Simultaneamente, criará uma pressão para que em tempos de maior crescimento se aumente a despesa até gastar essa percentagem. O valor da percentagem não será um valor médio, e sim um valor mínimo efectivo da despesa, sendo que quando o PIB baixar, a resistência do SNS e da opinião pública a reduzir essa despesa será forte. Ou seja, politicamente, sempre que baixar o PIB ganha-se uma “batalha” para não cumprir a percentagem (claro que quando sobe o PIB todos ficam contentes por aumentar a despesa pública em saúde, é sempre possível fazer mais mesmo que não seja necessário, mesmo que seja apenas aumentar salários – a este propósito, vale a pena aprender com o que sucedeu no Serviço Nacional de Saúde inglês, ver aqui).

d) simplesmente estabelecer uma percentagem do PIB para a despesa pública não clarifica se o ajustamento (para cima e para baixo, conforme andar o PIB) é feito via quantidades ou via preços. Por exemplo, quando o PIB sobe crescem os salários, quando o PIB baixa, reduzem-se os salários? Se assim for, e todo o ajustamento for preços (salários, e todos os pagamentos feitos pelo Serviço Nacional de Saúde a privados, medicamentos incluídos), então não haveria problema em termos assistenciais. Mas será que é razoável admitir que à fixação da percentagem do PIB para a despesa pública em saúde corresponderia apenas e unicamente um efeito preço? Tenho grandes dúvidas, até porque aumentos de serviços assistenciais ter-se-ão que reflectir, neste contexto de percentagem fixa do PIB para a despesa pública em saúde, numa redução de preços ou de outros serviços prestados.

Dito isto, se fixar uma percentagem do PIB para a despesa pública em saúde me parece uma má ideia, ter uma sua variante já me parece uma boa ideia. Se houver uma percentagem do PIB para um fundo público de estabilização da despesa em saúde, com essa percentagem revista de regularmente (cinco em cinco anos por exemplo), a despesa pública via Serviço Nacional de Saúde seria obtida a partir deste fundo, mas não o esgotando, e tendo que justificar o valor da despesa realizada. Em anos de maior crescimento económico, o fundo acumula, em anos de menor crescimento, o fundo reduz-se, como forma de estabilizar o orçamento do SNS e com essa estabilização contribuir para orçamentos para as entidades do SNS que possam ter uma perspectiva plurianual de estabilidade e assim serem geridos de forma mais adequada. Esta é a proposta feita no recente relatório patrocinado pela Fundação Calouste Gulbenkian. Claro que a gestão deste fundo exige uma enorme disciplina de quem estiver à frente dele. Tem, porém, claras vantagens, a meu ver, sobre fixar uma percentagem do PIB para a despesa pública em saúde em cada ano.

 

o slide 28

o slide 28

Autor: Pedro Pita Barros, professor na Nova SBE

Professor de Economia da Universidade Nova de Lisboa.

1 thoughts on “Pacto para a saúde (1)

  1. A lista parece-me ser muito equilibrada e ajuizada. A analise ponto por ponto é muito bem vinda A percentagem de despesa publica vai estar inter-relacionada com a carga dos impostos e com a qualidade que podemos/querenos ter no SNS.

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